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Veronica Pinheiro

CRIANÇA É QUASE RIO

By 10 de abril de 2025abril 17th, 2025No Comments

 

OFICINA: DESENHOS PARA TORNAR VISÍVEL

“Mundos dentro de mundos”, essa frase contida no Caderno Selvagem Desenhos para tornar visível, de Lua Kali, abriu um diálogo profundo com as crianças sobre o invisível. Partimos da conversa para observação de mapas e tabelas de composição das coisas. De que é feito isso? O que tem dentro daquilo? Invisível pra quem?

A busca pela construção e pelo despertamento de memórias é uma forma de conexão das crianças com sua comunidade e o tempo presente.

Sonhamos em nossas oficinas, através da arte e da gentileza, despertar sensibilidades e construir vínculos com a natureza e com as memórias do território. As oficinas, em muitos momentos, são encontros de celebração e fortalecimento da vida.

Entre os mapas apresentados às crianças, havia um que era sobre os rios do Rio de Janeiro. Entre os esquemas de composição, um falava que o corpo de uma criança tem entre 75% e 65% de água. As crianças observaram que as pessoas, conforme vão envelhecendo, têm menos água no corpo. Foi quando eu ouvi:

“A gente é muita água. Criança é quase rio.”

Por um tempo, ficamos pensando no que teria dentro desse rio chamado criança. Num outro momento, perguntei o que teria nos outros 30%, uma vez que 70% era água. Timothy me respondeu sem pensar “SONHO”. Pedro concordou e me disse:

“Uma criança é feita de água e sonho!”

Perguntei a Timothy num cantinho do que era feito uma professora, ele me disse que uma professora que brinca era feita de água e coragem. E que ele sabia disso porque ele precisa ter coragem todas as vezes que ele vai se submeter a uma cirurgia ou enfrentar um tiroteio. Mais uma vez, Lua Kali se fez presente: os mundos dentro dos mundos se revelavam à medida que as palavras faladas foram convidadas a desenhar caminhos em tecido através de pincel e tinta.

Os grupos para a construção dos painéis eram compostos por crianças de idade variada. Com ou sem necessidades especiais de suporte, elas desenharam para tornar visível. Você já recebeu um desenho feito por uma criança? O desenho na infância é muito mais do que uma manifestação gráfica em papel. Uma criança que desenha se conhece, identifica o que sente, se apropria dessa informação e anuncia o que sentiu ao mundo.  A arte que não é comercializada, é a comunicação da alma.

Uma criança ao desenhar tenta se aproximar, estabelecer contato e vínculo. As palavras “brincar” e “vínculo” têm a mesma origem no latim vinculum, que significa “laço”. Derivada do verbo vincire, brincar significa “enlaçar”, “encantar”. O desenho na primeira fase da vida é uma brincadeira feita com o corpo inteiro. O processo de escolarização das crianças vai retirando delas os espaços de brincar à medida que vão crescendo. E o momento do desenho vai ganhando regras, hora e lugar determinado.

As oficinas propostas pelo grupo Aprendizagens buscam, em seus processos, ouvir e respeitar as crianças. Para além de pensar diversidade e inclusão, desejamos que as crianças fortaleçam seu estado de pertencimento. Maya Angelou, refletindo sobre diversidade, inclusão e pertencimento, afirma que “diversidade” é quando você senta à mesa; “inclusão” é quando você pode falar e “pertencimento” é quando você é ouvido. Pertencer é poder desenhar caminhos de liberdade, afirmando que somos feitos de “água e sonho”, sabendo que seremos ouvidos.

As respostas e reflexões apresentadas durante a oficina me fizeram lembrar de seu Luiz Lana¹, vindo das estrelas, indígena do povo Desana. Seu Luiz era um Këhíríporã, filho do desenho do sonho. O sonho é uma das cosmotecnologias que nos permitem ver o que tem dentro dos seres. Com seu Luiz aprendi a ter coragem para desfiar os fios das memórias que me ligavam à minha avó. Com as crianças, aprendo a ter coragem de desenhar desenhos para hoje e para amanhã.

Os painéis “Uma criança é feita de água e sonho” estiveram expostos no I Encontro de Políticas Públicas para a infância da Cidade do Rio de Janeiro, dia 05 de abril de 2025. Além das pinturas em painéis, as crianças gentilmente cederam seus desenhos, esculturas, tecidos planos e trabalhos fotográficos para compor a exposição de arte do encontro. Como uma carta aberta ou um manifesto de vida, os desenhos das crianças no evento orientaram as palavras que fecharam o encontro. Muitos educadores, após o encerramento do evento, vieram compartilhar que o desejo de permanecer nos territórios de suas escolas/projetos foram ativados ao saber que as crianças sonham imersas em água. Nesse dia, os desenhos revelaram alguns mundos contidos no mundo que é o Complexo da Pedreira, para autoridades, políticos, secretários de educação e educadores. As crianças do morro da ventania começaram a ventar suas ideias de bem viver pelo mundo. Que tenhamos coragem para ouvir o que diz o vento e as crianças.

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¹ Luiz Lana. Leia mais no texto “Luiz Lana e o fio da memória”, link, e em Antes o mundo não existia – Mitologia Desana-Kehíripõrã narrada por Umusï Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana) e Tõrãmü Kehíri (Luiz Gomes Lana).