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Cadernos e LivrosCiclo Selvagem

LUIZ LANA E O FIO DA MEMÓRIA

By 24 de março de 2025No Comments

Tõrãmu Këhírí embarcou de volta em sua canoa para o grande universo.

Se existe um fio da memória, Tõrãmu o tem em suas mãos e pode desfiá-lo até um outro mundo, antes do mundo existir.

Tõrãmu Këhírí nos mostrou que as perguntas “quem sou?” e “de onde vim?” são incógnitas somente para os brancos, pois ele sabia muito bem da sua origem. Ele veio das estrelas, era um Këhíríporã, filho do desenho do sonho, do povo Desana Ümükomahsã, Gente do universo, descendente de Yebá Buró, a avó do mundo.

Tõrãmu Këhírí e seu pai, Umusï Pãrõkumu, fizeram um dos livros mais importantes da história, com a colaboração da antropóloga Berta Gleizer Ribeiro. 

Soube deste livro quando me apaixonei pela Berta Ribeiro. Foi amor à primeira vista de uma fotografia feita 70 anos antes. Na foto, Berta está fora de foco e encara a câmera. Ela veste uma roupa listrada que tem uma torção no decote, seu rosto está delicadamente pintado. Dois homens Kadiwéu estão dispostos de cada lado. O foco está neles. Usam adornos não indígenas: um lencinho no pescoço, uma rede de cabelos, talvez uma gravata amarrada como faixa na cabeça. Aquele instante em 1948, com vento soprando no pantanal mato-grossense, foi capturado por Darcy Ribeiro. 

 

Mergulhei em leituras sobre a vida e a obra da Berta, cheguei ao Rio Negro e à sua pesquisa sobre os trançados de palha. Neste momento de sua trajetória, ela desviou por um afluente e foi encontrar Umusï Pãrõkumu e Tõrãmu Këhírí, dois Desana de quem teve notícia de que trabalhavam sobre a mitologia do seu povo. Ela passou um mês e meio com eles na aldeia São João, no rio Tiquié, colaborando para a escrita do livro.

Luiz Lana com a mulher e a filha. Foto: Berta Ribeiro.

 

Tõrãmu Këhírí tinha um nome em português, Luiz Gomes Lana. Seu pai era também Firmiano Arantes Lana. O livro foi lançado em 1980 com o extraordinário título: Antes o mundo não existia.

A edição de 1995, organizada por Dominique Buchillet, antropóloga francesa do Institut de Recherche pour le Développement (IRD), estava acessível na internet. Começa assim: “Antes o mundo não existia. A escuridão cobria tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio da escuridão. Ela apareceu sustentando-se sobre seu banco de quartzo branco.” 

É quase impossível não desejar que todo mundo leia o livro. Quando esse pensamento atravessa uma editora, ele se converte num misto de entusiasmo e obsessão.

A jornada até a publicação pela Dantes em 2019 foi totalmente ligada à criação da Selvagem. Nossa edição se tornou possível graças à Ana Luisa Chafir, à Fundação Darcy Ribeiro, à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), à Bia Saldanha, ao Instituto Socioambiental (ISA) e a uma rede existente para que fios de memória não se percam. Depois do contrato assinado com seu Luiz Lana, fui conversar com Aloisio Cabalzar e Beto Ricardo na sede do ISA em São Paulo. Foi quando o Beto contou sobre as complexidades entre a edição organizada pela Berta e a organizada pela Dominique. Bem, para editar seria importante estar com seu Luiz Lana e contemplar ambas as organizadoras.

Enquanto isso, seu Luiz Lana preparou novos desenhos e enviou por Correios, acreditando que os anteriores haviam se perdido.

Seu Luiz Lana chegou no Rio de Janeiro no dia 12 de novembro de 2018 para abrir o primeiro ciclo Selvagem. Passados quase 7 anos, o nome da roda de abertura ganha mais significados: Viagem ao centro da vida. Luiz Lana, Luis Eduardo Luna e Sergio Besserman foram recebidos e mediados por Ailton Krenak no dia 13 de novembro, às 10h da manhã. Na tarde do mesmo dia, Jeremy Narby, Gustavo Porto de Mello e Moisés Piyãko, também mediados por Ailton, falaram sobre a serpente e o DNA. Era Selvagem que acabava de nascer.

 

Fala de Luiz Lana no primeiro dia do Selvagem 2018. Foto: Marcelo Pontes

 

Seu Luiz ficou por mais uma semana no Rio para trabalharmos na futura edição. Enquanto um de nós lia em voz alta a versão do livro organizada por Berta, o outro acompanhava a leitura com a versão da Dominique. Foi quando substituímos alguns termos como firmamento por céu, trevas por escuridão, cigarro por tabaco. Ele também desenhou grafismos Desana e me ditou um novo trecho que está na página 70: “Juntamente com eles chegou o grupo dos Këhíriporã, trazidos como cunhados. Estes ficaram num lugar chamado Mirim nuguron, atual sítio de Luiz Gomes Lana Tõrãmü Këhíri”. Uau! Depois de a Avó do Mundo criar a maloca do universo, criar o Sol, a Terra, enviar a canoa cobra para cá. Depois de estabelecer mais de 50 malocas de transformação, de gente-peixe ter se transformado na futura humanidade, seu Luiz Lana estava me dizendo que o fio da memória chegava na sua casa. 

 

 

 

Luiz Lana trabalhando na 3ª edição do livro, com a Dantes. Foto: Anna Dantes.

 

Nessa altura, a foto da Berta já era como uma “santinha”, uma imagem oracular animando a equipe Selvagem a preparar a segunda edição do ciclo. Trabalhei no livro ao longo de 2019 acompanhada de um forte sentimento de gratidão e respeito pela permissão de participar desse fio sagrado de memória viva e ancestral. 

Em julho de 2019, visitei o arquivo da Fundação Darcy Ribeiro em Brasília e encontrei os desenhos originais para a primeira edição de Antes o mundo não existia que o seu Luiz Lana acreditava estarem perdidos. Pude também pesquisar outras pastas com originais que incluíam as ilustrações para o artigo “Chuvas e Constelações: Calendário econômico dos índios Desana”. (Ciência Hoje, v. 6, nº 36, 1987). 

 

Páginas do livro “Antes o mundo não existia”

 

Seu Luiz Lana voltou ao Rio de Janeiro para o lançamento do seu livro em novembro de 2019. Preparamos uma exposição com seus desenhos no Teatro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Toda a equipe usou o vestido da Berta, uma criação da Flavia Aranha a partir da foto de 1948, e distribuímos um caderninho com a foto na capa.

 

Fotos: Elisa Mendes e Madeleine Deschamps

 

No dia do encerramento do Selvagem, sonhei com uma mulher fumando um cigarro enquanto sua pele alternava as texturas e cores de cobra roxa, de asa de borboleta, de purpurina, de lagarto, de onça, de cimento…. Acordei com a sensação de que a Avó do Mundo tinha vindo e me permitido vê-la criando e recriando o mundo em todas suas formas até hoje. A Avó do Mundo não é um passado, é uma presença criadora, que produz os desenhos que chamamos de vida. 

Quem contou essa história foi Luiz Lana e seu pai Firmiano, filhos do desenho do sonho.

Ao final do ciclo de 2019, seu Luiz Lana voltou para o Rio Negro.

Depois veio a pandemia. Nunca mais nos vimos. Nos falamos algumas vezes por telefone. Seus desenhos para a nossa edição fazem parte do acervo do Museu de Arte do Rio (MAR), sonhamos em fazer um novo livro juntos, as narrativas dos livros Antes o mundo não existia e A serpente cósmica confluíram na flecha A serpente e a canoa e ele ficou feliz. As palavras escritas por ele ganharam a voz de Daiara Tukano e Ailton Krenak. E, como a vida é uma canoa em movimento, fizemos um ciclo sobre o livro organizado por Idjahure Kadiwel e Francy Baniwa, e dali brotou nossas profundas parcerias com eles e com o João Paulo Tukano*.

Antes o mundo não existia é o primeiro livro de autoria indígena no Brasil. É um marco também no que Berta chamou de narrativa pictórica, que é essa generosidade de acompanhar a narrativa com desenhos para aproximar o leitor. Leia aqui o Caderno Selvagem A mitologia pictórica dos Desana, de Berta Ribeiro.

 

Tõrãmu Këhírí partiu e não respondi sua mensagem de quarta-feira passada.

Sua voz estava tão frágil que foi difícil entender o que dizia. 

Há muito tempo não o ouvia. 

Um fluxo de emoções aflorou. Fiquei muito triste.

A canoa desliza e segue a viagem.

 

Hoje recebi uma mensagem do Ailton:

Não há porque nos despedirmos com tristeza de alguém que desafiou com a vida todas as narrativas de finitude 🦜🌿🦜

Nosso Luiz Lana fez história na transmissão das Cosmovisões Dessana- e seus primos cosmológicos Tukano e Baniwa 🌕

Viva Tolumãn

 

Ailton Krenak, Anna Dantes, Luiz Lana e Álvaro Tukano. Foto: Madeleine Deschamps

 

Para agradecer e celebrar a existência de seu Luiz Lana, a partir de hoje, compartilhamos a edição de 2019 de seu livro gratuitamente. Baixe aqui.

 

Tõrãmu Këhírí, ou Luiz Gomes Lana (1947- 2025) é, descendente dos Këhíripõrã, ou filhos (dos desenhos) do sonho, indígena Desana da região do Alto Rio Negro. Luiz é filho primogênito de Umusï Pãrõkumu, Firmiano Arantes Lana, e de Emília Gomes. Era tuxáua e não falava português. Aos 30 anos, Tõrãmü Këhíri resolveu registrar em um caderno as histórias que seu pai sabia. Com seu pai, escreveu e ilustrou o livro Antes o mundo não existia, narrativas da cosmogonia Desana, publicado pela Dantes em 2019 na sua terceira edição.  Além de sua contribuição intelectual e artística, Luiz Lana desempenhou um papel essencial na organização política e cultural dos povos indígenas do Rio Negro. Foi um dos  idealizadores da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), presidente da União das Nações Indígenas do Rio Tiquié (UNIRT), e trabalhou pelo fortalecimento da autonomia das comunidades.

 

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• Muitos materiais Selvagem brotaram a partir desse encontro. Aqui, citamos alguns: as flechas A serpente e a canoa e Metamorfose, esta última abre com desenhos de Luiz Lana; Jeremy Narby conta no caderno O primeiro ciclo Selvagem sobre sua troca com Tõrãmu; além de termos um ciclo de leitura Antes o mundo não existia, que mobilizou uma produção de cadernos de Jaime Diakara, Denilson Baniwa, Idjahure Kadiwel, Francy Baniwa e João Paulo Tukano.

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