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Diário Cristine Takuá

TUDO É ESCOLA

By 25 de setembro de 2025novembro 27th, 2025No Comments
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TUDO É ESCOLA
Cristine Takuá

25 de setembro de 2025

Entre o sopro do Vento, as Abelhas nativas e a Tartaruga.
Os caminhos da aprendizagem.

 

Foto: Cristine Takuá

               Nhembo’ea

“Nhane nhembo’ea na yvyra, há’e vyae py yvyra Guy rupi nhande kuai nhanhembo’e vy. Nhandereko mbo’ea ma yvyra tajy, yvyra gui hae jaikuaa nhande kuery, yvyra haema nhane arandu rapyta.” 

“Nosso modo de aprendizagem é a árvore, por isso nós aprendemos debaixo da árvore. Nosso mestre é a árvore Ipê. Da árvore, nós adquirimos os conhecimentos. A árvore é o princípio de nosso conhecimento.”

Xamoi José Verá

Ipê amarelo, desenho de José Vera

Refletindo sobre os ensinamentos do xamoi José Verá, lá da Tekoa Campo Molhado, no Rio Grande do Sul, comecei a me conectar com os pensamentos de Isael Maxakali, que veio me visitar aqui em minha morada com sua família. Ele veio dizendo que queria trazer os netinhos pra virem dormir na floresta, ele sempre diz que todos os lugares são espaços de aprendizagem. Debaixo da árvore, na beira do rio, na casa de cantos e rezas, nos caminhos das trilhas, todos os lugares são salas de aula, então tudo é escola!

Nesse caminhar vamos aprendendo a nos colocar no nosso lugar, entendemos sutilmente os códigos que nos rodeiam e adquirimos a sensível sabedoria de dialogar com os elementos que aparecerem. Já algumas semanas atrás fomos visitados por um vento demasiado forte, seu sopro era tão intenso que derrubou árvores, sacolejou a terra e nos fez pensar sobre sua força e seu poder. Passamos dias e dias arrumando toda a agitação que ele causou nos caminhos, no terreiro e em nossa casa.

O vento noroeste, dizem alguns caiçaras, era um menino muito danado. Sempre que saía para brincar bagunçava muito. Até que um dia sua mãe subiu no alto de uma montanha e foi conversar com a mãe natureza para pedir uma orientação, pois não aguentava mais tanta bagunça do menino noroeste. Aí a mãe natureza orientou a mãe do menino noroeste a pegar uma fralda de pano e amarrar bem forte no alto de um galho de uma árvore para que, quando ele fosse fazer bagunça, ficasse apertado sem condições de passar ligeiro derrubando baldes e bagunçando o terreiro. Por isso era muito comum as mulheres mais velhas guardarem uma fraldinha de pano para, quando o vento noroeste passasse, amarrar na árvore e impedir que o vento causasse tantos estragos. São ensinamentos antigos que hoje poucos praticam. Dentro desse saberes que podem parecer simples existe um conhecimento por detrás que ensina a gente a se proteger e a caminhar com cuidado.

Há algumas noites, estávamos reunidos no meio da floresta para, junto com um grupo de jovens e crianças, passar a noite no estudo com a medicina moã’i. Quando já estávamos na força do cipó, começou no alto da serra a ventar, um sopro longe e forte. Eu fiquei preocupada que ele pudesse ser muito intenso e saí para fora da casa com meu cachimbo, soprando tabaco no vento e dialogando com ele. Invoquei Yvytu xeramoi e Yvytu Xejary, o avôzinho vento e a avózinha vento para que caminhassem devagar e suave. Durante um tempo fiz essa invocação soprando tabaco, até que retornei para dentro da opy’i, a casa de rezo, e fiz um canto para o vento. Surpreendentemente aos poucos ele foi diminuindo até que se foi soprando para outras direções, e assim seguimos a noite cantando, meditando e nos concentrando nos ensinamentos da medicina.

Esse acontecimento me deixou muito emocionada e me fez pensar como é incrível quando a gente se permite saudar, dialogar com os seres espíritos, com tudo que nos rodeia. Tudo passa a fazer mais sentido na vida.

Foto: Cristine Takuá

Há poucos dias encontramos perto de casa uma tartaruga, Carumbé. As crianças pegaram e trouxeram pra casa. Quando vi, lembrei do xamoi José Verá, que diz:

“Nhanderu criou a tartaruga como se fosse remédio. Elas vivem trezentos a quinhentos anos, ou seja, é quase imortal. Nhanderu criou para que não seque e não falte água para nós, Guarani. Por isso não devemos matar as tartarugas. Se acharmos uma delas no caminho, na estrada, precisamos levar ela de volta pra água… As crianças precisam aprender isso na escola.” 

No livro Nhemombaraete Reko Ra’i – fortalecendo a sabedoria, xamoi José Verá traz essa reflexão sobre a importância da tartaruga e faz um desenho dela, para que todos aprendam que ela é medicina e que é sagrada, por isso Nhanderu a enviou aqui para a Terra.

Depois de conversar com as crianças sobre esses ensinamentos, levamos a tartaruga para um riozinho que fica no “sítio”, onde construímos uma casa de reza, sala de aula da Escola Viva Guarani. Agora ela vive lá em meio à floresta.

Fotos: Cristine Takuá

Nesse sonho de fortalecer as práticas de transmissão e fazer com que os saberes e fazeres antigos se ativem em meio aos jovens e às crianças, organizamos dias atrás um encontro de intercâmbio com uma família Guarani que veio lá do Jaraguá para compartilhar os conhecimentos sobre as abelhas nativas sem ferrão da Nhe’ery. Eles trouxeram abelhas Jataí, Uruçu, Mandaçaia e Mirim’i. Foi um encontro muito emocionante onde pudemos conversar sobre a importância das abelhas para nossa vida, para realização dos rituais de nomeação das criancinhas e para a manutenção da floresta. Organizamos as caixinhas de abelhas ao longo da trilha na floresta para que as crianças e jovens que por lá caminharem possam conhecer e aprender com elas. As abelhas são grandes mestras e trabalhadoras muito articuladas coletivamente que nos possibilitam aprender a ser forte e ter coragem de seguir firme a cada novo dia.

Assim, os caminhos de aprendizagem são tecidos dialogando com o sopro do vento, o encanto das tartarugas e com a força das abelhas. E vamos entendendo que tudo que nos rodeia é escola. Cada possibilidade de aprender nos abre portais de uma percepção mais ampliada, consciente e respeitosa com todas as formas de vida.

Viva as Escolas Vivas!

Foto: Cristine Takuá