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Diário Veronica Pinheiro

SEMEAR PALAVRAS

By 9 de setembro de 2024julho 14th, 2025No Comments
SEMEAR PALAVRAS
por Veronica Pinheiro

09 de setembro de 2024

Oficina de papel-semente, poesia e plantio de sementes
Conversa sobre sonhos e sobre bocas que devoram o mundo

Foto: Wagner Lúcio

“Tia, rúcula é planta ou árvore?

“Rúcula é planta de comer. Você quer plantar semente de rúcula?”

“Sim, eu quero. Rúcula é nome bonito. Tem nome de mulher. Tipo Úrsula. Mas começa com ‘R’ de “Rafaela” e ‘R’ de ‘Rita’.”

“É! Rúcula é nome bonito. Você quer plantar a semente de rúcula porque você quer plantar a palavra ‘Rúcula’?”

“Não. Quero plantar a palavra ‘Saudade’ com ‘s’ de ‘Sofia’. Mas não quero uma árvore. Quero que a palavra saudade seja só uma plantinha.”

Alice e eu sentimos saudades. Ela chora todos os dias no final da aula com medo de ser esquecida na escola. Ela chega sorrindo. Almoça. Brinca. Estuda. Conversa. Mas, quando, às 17h, os responsáveis começam a chegar e as crianças são chamadas pelo nome para ir embora da escola, Alice chora. A menina, todos os dias, se justifica como se estivesse incomodando. O choro de Alice não incomoda a ninguém. As outras crianças da escola, professores, funcionários e diretoras acolhem Alice e suas lágrimas. Ela chora de saudade. A mãe de Alice se encantou ano passado. A menina sente medo de ficar só.

Alice e eu temos um segredo, ela pode pegar qualquer brinquedo meu e levar pra casa quando quiser para se distrair e dar gargalhadas de olhos fechados. Alice tem olhos pequenos e, quando gargalha, é quase impossível ver seus olhos. Os olhos de Alice falam mais que sua boca. No entanto, no dia de plantar sementes ela resolveu falar. E falar muito.

A oficina Semear Palavras teve 4 encontros. Passamos um mês juntando numa caixa na sala de leitura todas as folhas de papel descartadas na escola. No primeiro encontro, compartilhamos com as crianças as histórias das árvores que são mastigadas por bocas comedoras de árvores para virar papel. No Brasil, as árvores mais utilizadas para produção de papel são o eucalipto e o pinus. Essas árvores são de crescimento rápido. Por que precisam de árvores que crescem rápido? As crianças respondem:

“Porque a gente usa papel demais e a fábrica tem pressa.” Arthur, 8 anos.

Todas as árvores possuem em suas células uma substância chamada de celulose – é a partir da polpa de celulose que o papel é fabricado. O monocultivo dessas duas árvores vem tomando espaço no campo brasileiro. Pinus e eucalipto são consideradas árvores exóticas, porque não são nativas do Brasil, ou seja, não fazem parte do bioma em que vem sendo plantado. Os que representam as empresas chamam a monocultura de “floresta plantada”. Essa é a informação que chega às escolas de maneira geral e oficial. Por outro lado, ambientalistas e entidades de luta pela terra preferem chamar as plantações de “deserto verde” e reafirmam que as monoculturas não podem ser consideradas “florestas”, devido à pequena biodiversidade em seu interior. Além disso, as comunidades tradicionais e de pequenos agricultores, a partir da relação direta com a terra, defendem o ponto de vista de que as plantações dessas espécies em escala industrial podem gerar drásticos impactos hidrológicos. As monoculturas de eucalipto e pinus contribuem para a diminuição do fluxo de rios e córregos.

Essa conversa começou com um papel retirado da lixeira. O papel voltou ao caderno, à loja, à fábrica, à árvore plantada. Terminamos o primeiro encontro nos perguntando se precisávamos de tanto papel assim.

A escola que conhecemos é uma invenção ocidental que defende interesses específicos. O modelo de escola praticado é incoerente com o discurso de preservação e cuidado com a natureza que superficialmente tentamos aplicar. Uma escola sem papel, seria possível? Será que uma escola que faz seu próprio papel iria desperdiçar tantas folhas? Quando criança, eu deixava o copo com leite quase pela metade, minha mãe dizia que eu só fazia aquilo porque não sabia o tanto de trabalho que dava para ter leite no copo.

Foto: Sabrina Amarante

No segundo encontro, começamos a preparar o papel descartado para ser liquidificado. O papel foi picado pelas crianças e colocado de molho em água por 24 horas. “Ué, tia, a gente não vai plantar hoje?” Passei o dia respondendo a essa pergunta. De maneira geral, falamos como uma coisa é feita e partimos para uma atividade conclusiva. Pular etapas dá às crianças a impressão de que nós, humanos, não precisamos esperar. Para liquidificar o papel precisamos esperar o próximo encontro. Entre um encontro e outro e outro, Alice se mostrava mais interessada na ideia de plantar papel-semente.

Seguimos as etapas de preparação do papel. Liquidificar, enformar, adicionar sementes, secar. A escola de ensino regular se tornou  o lugar em que se aprende com olhos e ouvidos. O restante do corpo quase sempre está fora do processo. O corpo produz pensamento e memórias complexas. Deixar o corpo construir respostas aos desafios sem dizer o tempo inteiro o que uma criança precisa fazer é permitir que ela confie em si própria. Algumas folhas ficaram muito grossas e não secaram bem. Um grupo de crianças não dividiram bem a quantidade de semente, o que resultou em papéis-semente sem sementes.  Ao fazer esse papel, você pode escolher a semente das plantas que quiser; nós tínhamos sementes de goiaba, rúcula, agrião, margaridas, cenoura, tomate e salsa.

Depois de pronto, você pode usar o papel-semente para convites, papel de carta, presentes, confete biodegradável, cartões de visita… Na escola, com as crianças, escrevemos poesias, sonhos e palavras bonitas nos papéis com tintas de terra. A terra do quintal da escola e dos barrancos de Costa Barros são as mesmas das tintas de nossos desenhos. Distribuimos os papéis-semente entre as crianças. A maioria escreveu “PAZ para pedreira”. Repetidas vezes li a palavra floresta, amor e dinheiro. Entendo o motivo da palavra dinheiro aparecer muitas vezes. Ter o que comer e viver com dignidade ainda é sonho de muita criança. Entre muitas palavras pintadas e desenhos escritos, Alice se preocupa com o tamanho da planta que ela vai semear.

As palavras, textos e desenhos foram plantados em vasos e nos quintais, na escola e nas casas. Quem tem quintal em casa levou semente que vira árvore. Quem gosta de flores levou semente de margaridas. Cenoura e tomate também foram sementes muito escolhidas. Alice foi a única que escolheu a semente pelo nome. Ela achou  “rúcula” um nome bonito. O papel que um dia foi árvore, agora guardava sementes que voltariam pra terra pelas mãos das crianças. Reciclar, desenhar e pintar era só a estrada. Queria mesmo falar de semear, semear sonhos com palavras e gestos. Queria na verdade dizer que precisamos cuidar do nosso imaginário (daquilo que sonhamos e desejamos) como se cuida de uma semente. Cuidar da semente até que ela germine, cresça, vire árvore. Depois, cuidar da árvore para que ninguém a derrube. Semear palavra é assunto sério, de onde venho palavra é o desabrochar da voz do falar antigo. Sendo a força do falar antigo, o fundamento dinâmico da vida.

Foto: Professora Míriam Ribeiro

O percurso Aprendizagens Selvagem é um percurso de envolvimentos. É impossível se envolver com um lugar sem se envolver com as histórias daquele lugar e com as pessoas que vivem ali. O envolvimento não é dizer o que o outro deve fazer, mas se disponibilizar a refazer juntos possibilidades e caminhos. Quando nos disponibilizamos a ouvir, o outro vai falar das coisas que estão ocupando muito espaço no peito. E são justamente essas coisas, que ocupam muito espaço, que dão sentido à vida, porque a vida é feita pelo que abunda.

Que sejamos, então, abundantes e semeadores de boas e belas palavras.