QUAIS CÓDIGOS DECIFRAMOS?
por Cristine Takuá
27 de setembro de 2024
Foto: Cris Takuá
A natureza dá sentido à vida e, nela, tudo tem seu equilíbrio. É como uma imensa teia, onde tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que, com sua delicadeza e sabedoria, vão nos guiando e nos ensinando como bem viver, que em Guarani se fala: Teko Porã. É um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande Teia, onde vivemos em harmonia e respeito.
Foto: Carlos Papá
Carlos Papá fala que, desde criança, os Guarani aprendem os códigos para poder caminhar e viver na floresta.
“Eu andava pelas florestas para poder decifrar os códigos, porque, a cada dia, quando se passa na mesma floresta, mesmo que seja um lugar por onde você já passou, ele já mudou. Neste lugar onde você passou não tinha formiga, aí, no outro dia, você passa por lá e têm formigas ou um besouro. Então, você tem que analisar… As paisagens mudam, né?
Por exemplo: você faz um quadro, você pinta uma árvore, aí você pensa assim: ‘Acho que faltou uma lagarta na folha. Acho que vou fazer uma lagarta na folha. Só que aí só vou fazer amanhã, hoje não vai dar, porque eu estou cansado ou com sono, aí eu vou fazer amanhã a lagarta. Ou uma borboleta voando’. Mas você deixa tudo pra amanhã.
Foto: Carlos Papá
E aí é a mesma coisa com a natureza. Quando você está num lugar, fica em silêncio.Talvez não tenha pássaro ou água escorrendo. Aí você olha, fixa bem, marca bem o jeito que era. Aí você volta pra casa, no dia seguinte, ou três ou quatro dias depois, você volta para o mesmo lugar de novo, analisa tudo. Está diferente, porque talvez tenha chovido ou agora tenha um pássaro, um tucano ou um grilo. Ou talvez tenha uma borboleta voando, uma borboleta sem estar. Então mudou a paisagem, não é a mesma coisa.
Eu fazia essa leitura: por que mudou? E a luz do Sol que bateu neste dia em que eu estava vendo. Essa luz que bateu estava clara. Depois de três dias, a luz não era a mesma coisa, porque o Sol estava meio escondido, as nuvens estavam baixas. Então, as coisas mudam. E aí você vê o grilo ali namorando ou o grilo ali. Você olha para o grilo e fixa aquele tempo daquele jeito. Aí, no outro dia, você volta lá de novo: o grilo não está mais lá e o tempo está maravilhoso, tem tempo bom. Só que o grilo não está mais lá.
Então, eu comecei a perceber os códigos das coisas que estão ali. Quer dizer, se você vê um tempo ruim, o grilo está ali de forma ao contrário, oposta, assim ou assim, na sua direção. Esses são os códigos que você tem para perceber que o tempo amanhã vai mudar, vai continuar igual, se vai fazer frio ou vai chover. Então, o grilo parece uma bússola que tem uma indicação… Então, você vai guardar isso na memória: quando o grilo está assim, é porque no dia seguinte vai dar tempo bom. Então, o grilo está se preparando pra ir pra cima, porque amanhã haverá um tempo bom e é o jeito dele comer uma folha nova. Então, ele está indo. Agora, se está assim, é porque no dia seguinte vai fazer muito frio e ele está indo para um lugar que nem é no chão e nem pra cima, está no lugar que tem menos corrente de ar frio. Então, ele está procurando lugar para se esconder, para ter menos corrente de ar, porque em cima é muita corrente de ar frio e embaixo também, porque embaixo o chão é muito frio. E aí, fica meio que no meio, para que não tenha uma corrente de ar frio.
Então, tudo isso a gente tem que estar percebendo, decifrando os códigos para saber caminhar e viver bem.”
Fotos: Cris Takuá
Aos poucos vamos crescendo e aprendendo os códigos que nos revelam os caminhos que vamos seguir. Porém, na escola, somos direcionados a aprender sinais e códigos que são desconectados da vida. Um monte de teorias de letras e números que acabam nos afastando do sentido real e natural dessa convivência, que nos é ancestral dentro da memória que habita em nosso interior.
Quais os códigos que conseguimos decifrar hoje? Quem alcança o entendimento das mensagens que trazem os Tupã, deuses do trovão? Quem entende os sinais das Jataí, as abelhinhas sensíveis nativas da Nhe’ëry? Quem dialoga com as formigas, quando estão num longo carreirão carregando folhas, muitas vezes maiores que elas mesmas, em direção a um lugar seguro? Quem sente e observa o caminhar das nuvens? Os sopros dos ventos? As ondas do mar que vão e vêm num equilíbrio muito próprio delas?
Sinto que é necessário nos reconectarmos com esses sinais da vida selvagem, que nos mostram exatamente o sentido de nossa existência. Séculos e séculos da razão humana ignoraram a sabedoria dos códigos da floresta.
Convoco e convido a todos e todas a se tornarem selvagens, se permitirem sentir, escutar e enxergar esses sinais que todos os dias pulsam ao nosso redor.
Foto: Carlos Papá