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Cristine Takuá

PLANTANDO UMA ESCOLA VIVA. DIÁLOGOS COM ABELHAS JANDAÍRA, TUBI, JATAÍ E O POVO POTIGUARA

By 10 de abril de 2025abril 17th, 2025No Comments

Foto: Cristine Takuá

 

******Poéticas da resistência******

De que vale aprender a gramática das línguas se não se conhece os mistérios da natureza”
Romildo Potiguara

 

Caminhando por terras Potiguara no início de fevereiro, pude sentir o pulsar da beleza que existe no universo do resistir para existir.

É muito incrível a força que desabrocha de quem quer despertar, acordar uma memória, assim como sentimos e vivenciamos junto aos Potiguara que vêm num processo muito animado praticando a sua língua de origem Tupi, quando muitos relatavam que, entre eles, esse saber não estava mais vivo. Nos cantos, nos estudos e no sonho de alguns jovens Potiguara, a língua vem a cada dia mais e mais sendo acordada. E através desse sonho, o coordenador da Escola Viva Guarani trouxe a poética de resistência da língua Guarani que também tem origem na língua Tupi. Lá fomos com ele, no projeto pensado pela Associação Selvagem, as Escolas Vivas e os pesquisadores apoiados pelo Instituto Serrapilheira, sentir e participar desse emocionante intercâmbio.

“Plantando uma Escola Viva” foi o nome do projeto que elaboramos para tecer juntos essa resistência de forma mais fortalecida. Por lá, caminhamos entre abelhas, cajus, jacas, comemos tapioca e muito peixe. Encontramos alguns sabedores e sabedoras que nos contaram histórias antigas e celebraram com belas cantigas nosso encontro.

Foto: Carlos Papá

Encontrar a mestra Iolanda Potiguara foi de grande emoção, pois havia conhecido ela lá no Acre num território Ashaninka em 2022 durante a conferência indígena de ayahuasca. Me identifiquei muito com ela, com sua luta, seus sonhos e palavras como flechas que voam longe reivindicando uma educação escolar indígena que respeite o modo de ser e estar no território de cada povo. No encontro que tivemos com ela na Escola Pedro Poti, ela deixou seu recado, uma bronca a todos para que tenham atenção e direção afetuosa com as crianças e os jovens. Ela atua na luta pela educação escolar indígena há muitos anos e vem sonhando transformar seu território numa prática verdadeiramente direcionada às práticas das escolas vivas.

Numa manhã fomos visitar a Associação Paraíba Mel e lá encontramos muitas abelhas de várias espécies, visitamos o jardim de Joana, uma anciã Potiguara  que cuida da associação, e também é parteira, raizeira e grande conhecedora da ciência da mata. Caminhando por entre o terreiro fui batizada por uma abelha com ferrão nos olhos e senti que aquele sinal que, ao doer, percorreu todo meu corpo estava me dizendo algo, como um código, um chamamento para me concentrar na potência que aquele encontro estava nos revelando.

Fotos: Anna Dantes e Cristine Takuá

Saí dali e passei o dia meditando sobre o tempo e os mistérios da vida. Sobre a educação, a colonização e as transformações que são impulsionadas pelas Escolas Vivas. Selvagem se tornou um portal em minha vida, pois durante anos fiquei bordando, tecendo considerações, reflexões sobre as epistemologias decoloniais e de repente me vi mergulhada num coletivo que, como formiguinhas, semeia esse pulsar de forma própria com encanto e beleza.

Tempo, tempo, tempo…

O tempo é um grande professor, mestre dos dias e dos saberes ancestrais. A vida é repleta de códigos e informações que nos orientam e guiam nossa caminhada. Dentro dos processos de resistência vamos observando um pulsar de sonhos e memórias sendo despertadas, através de uma parceria e uma rede de afetos e cuidados que vem sendo tecida com “fios” coloridos e muito fortes.

Por mais que o adoecimento e a contradição humana insista em descompassar o nosso caminhar, sentimos que estamos preparados para seguir poetizando os conhecimentos a cada novo amanhecer. A partir da semeadura das Escolas Vivas estamos nos fortalecendo e nos encorajando a seguir soprando resistência em forma de amor. E através de outros processos criativos e educativos vamos encontrando um suspiro para a alma e uma pausa para a dureza de situações cotidianas que muitas vezes insistem em cutucar a gente.

A educação escolar se faz presente em todos os cantos do mundo, e, com isso, culturas milenares vão sendo atravessadas e moldadas com a imposição de uma monocultura mental que não respeita o tempo das coisas. A padronização de um currículo que prioriza teorias desconectadas da vida, da floresta e dos espíritos é uma demasiada violência para povos de culturas muito antigas que sempre tiveram seus modos próprios de transmitir saberes e fazeres. Muitos dos conhecimentos fundamentais à vida vêm deixando de ser praticados e suas memórias vêm sendo adormecidas por essa imposição de séculos. Desde a catequização, depois escolas militares e hoje um incentivo a uma educação mecanicista e tecnologizada.

O fato de as crianças do mundo inteiro deixarem de brincar com a terra, subir árvores e sentir os códigos que o tempo ensina as tornam frágeis e despreparadas para lidar com as situações da vida. Nenhum povo sobrevive de letras e números! Precisamos conhecer as plantas e escutar suas mensagens, escutar as árvores, as ondas do mar, o curso dos rios, as montanhas, os trovões e o vento.

Fotos: Anna Dantes e Cristine Takuá

Por isso, sonho com mais e mais escolas vivas desabrochando nos territórios, para que as crianças possam ter liberdade de viver em paz, sem serem pressionadas a dizer o que vão querer ser quando crescer no momento onde ainda estão aprendendo a decifrar os códigos que a natureza tem. Imaginem  se todos sonhassem ser anciãos e anciãs, para além de doutor ou algo que carregue o peso de um título. Imaginem se as pessoas sonhassem ser um ancião que respeita todas as formas de vida, caminhando serenamente no compasso do Bem Viver.

Na floresta habitam seres muitos criativos. Os espíritos guardiões de tudo que nela habita estão a nos observar e estão bravos com nossa desajustada maneira de caminhar.

 

“RESISTÊNCIA”

(Ezequiel Potiguara)

Quem sou?
Sou filho dos que vós matastes,
O último dos que sepultastes,
O dono da terra que roubastes,
Aquele que traz sobre o dorso o nome Tupi.
Com qual audácia perguntas?
Como assim quem sou!?
Sou eu, àquele que vós roubastes a liberdade,
O canto, o grito e a resistência dos que matastes.
Vivo vivendo naqueles que vivem em mim…
Sou verdadeiro, sou guerreiro, sou o último dos Tupis.
O que não teme a morte,
Que não lamenta a sorte,
Coisa que eu nunca tive.
Sou guerreiro verdadeiro,
Resistência sem recuo,
Luto e grito: demarquem o que é meu!
Ou melhor, devolvam-me!
Como assim, quem sou!?
Por acaso esquecestes que os Reis desta terra filhos tinham?
Não assustes!
Eu sou o herdeiro!
Eu estou aqui, com minha coroa de pena,
Meu báculo é meu arco,
Minha força é a Jurema,
Mas se quer saber meu nome,
Eu digo: chamo-me Resistência!

*   *   *

Versão em Tupi Potiguara

NHERANA

“Abápe endé?” eré!?
Nde remiîukapûera ra’yra ixé.
Nde remitymbûera takypûerixûara ixé.
Kó yby nde mondarõagûera îara ixé.
O aséî o era “Tupi” rerasoara ixé.
Nde nhe’ẽmemûã serã, emonã eporandupa?
Marã serã “Abápe endé?” eré?!?
Ixé nhẽ, abá i pukusamba’ee’ymamo sekó nde mondarõagûera.
Nde remiîukapûera nhe’engasaba, i xapukaîa, i nherana.
Aîkobé xe pupé oîkobéba’e pupé gûitekobébo…
Supi anhe’eng, kyre’ymbaba ixé, Tupi takypûerixûara ixé.
Te’õ suí osykyîee’ymba’e
Nd’oîmoasyî o ekoaba,
Tekokatu nd’aîporará-angáî.
Kyre’ymbabeté ixé.
Osyîe’yma nherana.
Amaramonhang, gûixapukaîa, “Peîkuapamoĩn xe resendûara!” gûiîabo…
Tó, “Peroîebyr ixébe!”-te gûiîábo!
Marã serã “Abápe endé?” eré?!?
Nde resaraî serã morubixarûera kó tetamendûara ta’yra suí?
Nde putupab umẽ, anheté, i mba’epûeryîara ixé.
Aîkó iké, xe akanga asoîaba gûyrá ragûera resé,
Xe ybyra’ĩ xe ybyrapara,
Xe pyatã Îurema,
A’ete, endé xe rera kuapotárememo,
Aîmombe’umo: Xe rera “Nherana”.

 

Foto: Alice Faria

Foto: Miguel Mendonça

 

Plantando uma Escola Viva Potiguara: diálogos interculturais conectando ecologia e revitalização da língua originária é o nome do projeto proposto à chamada interna do Instituto Serrapilheira com o objetivo de estimular colaborações entre cientistas e comunicadores de ciência ligados à rede de apoiados do instituto. Desenvolvida por Rafael Raimundo e Victor Felix em conjunto com a Associação Selvagem, a proposta prevê a produção de materiais de comunicação científica e educação por meio de oficinas estruturantes para a criação de uma Escola Viva Potiguara, inspirada em iniciativas similares de fortalecimento dos saberes indígenas chamada Escolas Vivas,  movimento promovido pela Associação Selvagem.