“Com fios finos e fortes
As aranhas tecem
Suas teias.
Às vezes,
uma gota d’água
se pendura,
ou um raio de Sol.”¹
Existem muitas formas de se contar a história de um lugar. Este diário apresenta registros de uma professora que, a partir da biblioteca da escola, tece fios de memórias. Ora despertadas, ora construídas, essas memórias estão compondo uma teia com fios finos e fortes. Uma teia com fios invisíveis que ligam sonhos, florestas, aldeias, quilombos, cidades, rios, seres grandes e pequenos. Com a aranha, as mulheres Huni Kuï aprenderam a arte de tecer, a aranha encantada Basne Puru Yuxibu é a guardiã dos fios de algodão e do conhecimento da tecelagem. Com o pajé Dua Busë, aprendi a tecer caminhos para uma escola viva. Dua Busë vive na Aldeia Coração da Floresta, no Acre, ele é guardião de profundos saberes da cosmologia Huni Kuï.
Tecer é obra miúda, requer constância e ânimo, um ânimo silencioso que precisa ser renovado com certa frequência. Quando se tece com fios de memória, uma multidão sustenta as mãos que tecem. E é essa multidão de seres visíveis e invisíveis que tornam possível sonhar vida e praticar o bem viver. A tessitura é movimento, uma dinâmica permanente que se dá em muitas direções, abrindo caminhos e gerando possibilidades.
Em 2025, o Grupo Aprendizagens, continuará tecendo encontros, oficinas e passeios com as crianças da Escola Municipal Professor Escragnolle Dória; simultaneamente, estará gerando movimentos para ampliar e aprofundar diálogos com Gerências e Secretarias de Educação, Projetos Sociais e outras escolas. Esses diálogos nem sempre são doces e aprofundá-los, algumas vezes, é saber de dores que não veríamos se memórias não fossem despertadas.
Voltar ao Complexo de Favelas da Pedreira faz parte desse movimento de ampliação e aprofundamento de diálogos, ao mesmo tempo que renovamos o compromisso e a coragem. “A gente combinamos de não morrer.” Esse combinado foi firmado no Ciclo Memórias Ancestrais, durante a Vigília da Oralidade, e é refeito a cada novo ciclo que a Selvagem me permite compartilhar. O primeiro mês de aula é o momento de saber como está o território, momento também de ouvir os anseios das crianças e dos adultos.
Preparado o encontro, separados os livros e organizada a sala de leitura é hora de retomar às atividades interrompidas pelas férias escolares. No primeiro dia de encontro com as crianças, com a caixa de livros nas mãos, escuto repetidamente os sons de disparos de armas de fogo bem próximo à escola. Imediatamente, fui à sala de aula, ao encontro dos alunos. Ao abrir a porta, encontrei todas as crianças abaixadas no chão para se proteger dos disparos. No canto da sala, embaixo da mesa, tremendo de medo, o menino Sol tapava os ouvidos com as mãos; com a boca cerrada, ele rezava pedindo que ninguém se ferisse.
O menino Sol, assim ficou conhecido o aluno que no final do ano letivo de 2024 interpretou o Sol no filme produzido pelas crianças. Resultante das Oficinas “Brincar Acende o Sol” (oficinas mediadas por Paula Novaes, Carol Delgado e Clarissa Viegas), o filme feito pelas crianças é uma experiência linda de escuta e criação. Brincando, por algumas semanas, o menino mais tímido do quarto ano foi o “Sol da Escola”. Brincando de Sol, ele brilhou de forma tão sensível que conseguiu emocionar professores, funcionários e as crianças da escola durante as exibições do filme na sala de leitura.
Encerramos as atividades em 2024 com o menino Sol chamando as férias de verão. Voltar à Pedreira e encontrá-lo gelado de medo foi duro demais. Sem saber exatamente o que se passava do lado de fora da escola, ao som apavorante dos disparos da guerra, também me coloquei no chão, junto das crianças. Por baixo das mesas distribuí livros de poesia. “A teia das águas, quem gostaria de ler?” Curiosamente, todos quiseram ler, pois à medida que liam podiam ocupar outros lugares e sair de onde estávamos, ainda que na imaginação. Coloquei em meu colo o menino Sol, vi que ele não conseguiria ler sozinho.
Quando li: “Uma floresta gigante / respira” .
O menino puxou o ar com uma força tímida.
Continuei a leitura: “Amazônia é seu nome”.
O menino em meus braços, me olhou enquanto eu lia, pois havia percebido que “respira” não era um imperativo dito por mim a ele, mas um processo vital desempenhado pela “floresta gigante”. O olhar dele me pareceu o olhar de quem se lembrava de algo. Tenho pra mim que o menino se lembrou floresta e continuou a respirar. Em meus braços, ele ousou continuar a leitura e, como os rios voadores que choram ao abraçar as montanhas, ele também chorou. Essas lágrimas assistidas me convocaram a permanecer. Permanecer tecendo afetos. Permanecer ao lado das crianças. “Tecer é obra miúda, requer constância e ânimo; um ânimo silencioso que precisa ser renovado com certa frequência”, voltei repetindo isso em voz alta. Estou repetindo isso até agora.