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Diário Veronica Pinheiro

HABITAR SONHOS

By 4 de dezembro de 2025dezembro 9th, 2025No Comments
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HABITAR SONHOS
Veronica Pinheiro

4 de dezembro de 2025

 

Há momentos em que a sala de aula se abre como uma clareira. Um lugar onde o tempo, por um instante, respira diferente. Foi nesse intervalo, entre o rigor da ciência e a vibração da vida, que o Pingo Selvagem entrou, atravessando como o Sol, a disciplina “Tópicos em Educação em Ciências”, obrigatória para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Lana Claudia de Souza Fonseca.

Acompanho a disciplina num momento em que o Grupo Aprendizagens ensaia mudanças de ciclos.

Pedir licença para encerrar um ciclo também é pedir licença para continuar.

O tempo, como ensina Nêgo Bispo, não se esgota: ele retorna. Ele espirala. Ele faz do fim um meio e, do meio, um novo começo. É nesse movimento circular que coloco os pés agora, enquanto observo que o percurso Aprendizagens, da Associação Selvagem, não se fecha, ele se alarga, se esparrama como rio cheio na cheia boa, abrindo novos caminhos para as águas que virão.

Nos últimos anos, acompanhei o diário vivo de tantas travessias: escolas, territórios, quintais, quilombos, aldeias, universidades, infâncias. E, nesse fluxo, algo em mim também se deslocou. 2026 não me encontrará em sala de aula todos os dias. Meu corpo-professora começa a confluir com outros rios, a seguir por outras margens onde a Selvagem segue chamando.

E, se havia alguma dúvida de que esse ciclo não é ponto final, ela se dissolveu quando me sentei na banca de TCC de Sophia Laura Vieira, na UFRRJ, para avaliar um trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. Ali, diante de mim, uma jovem mulher, que se prepara para professar também, apresentou um trabalho que carrega ecos do que temos vivido nas Aprendizagens Selvagem. Com o título “ENTRE RUÍNAS E ESPERANÇAS: CAMINHOS DE (RE)CONSTRUÇÃO DO ENSINO DE CIÊNCIAS E DA FORMAÇÃO DOCENTE NO CONTEXTO DO ANTROPOCENO”, o trabalho, orientado pela querida professora Lana Fonseca, nos fez sorrir ao perceber que os diálogos Selvagens têm chegado aos professores que estão se formando. 

Logo no início de seu texto Sophia escreve: “ser selvagem é resgatar laços, reencantar saberes e alimentar esperanças que resistem às ruínas”. Ela também diz que o caderno PINGO “causou uma ruptura na estrutura de pensamento da turma”.

Foi isso que vimos naquele dia, uma jovem professora decidida a criar rupturas e reencantar colegas de classe, amigos, familiares e percursos educativos.

Ao ouvir sua leitura, ao vê-la sustentar com delicadeza e firmeza sua própria travessia, algo se fechou dentro de mim, e, ao mesmo tempo, algo se abriu. Foi rito. Foi encruzilhada. Foi retorno. Participar da banca da Sophia foi como ouvir um rio dizendo: pode seguir, que aqui já tem quem continue correndo.

A defesa dela não era apenas dela. Era de uma comunidade inteira que se move. Era Aprendizagens encontrando novos caminhos para caminhar por outras pernas e outras vozes. Era a confirmação de que o cultivo das Aprendizagens (encontros, rodas, oficinas, escutas, textos, risos, atravessamentos) segue germinando para muito além da minha presença física diária na escola.

Quando a banca terminou, pude abraçar Sophia. E, logo depois, alguns dos seus amigos e colegas disseram que se sentem inspirados a trabalhar como professores em sala de aula a partir do convívio com ela. Ouvir isso, naquele espaço que já foi meu como estudante e hoje é meu como professora, trouxe a paz nessa mudança de ciclo. A Selvagem é rio que alimenta outros rios. E o percurso Aprendizagens Selvagem está se expandindo, alcançando novas margens, criando diálogos inesperados, inspirando pesquisas e fortalecendo práticas em territórios diversos. 

E eu sigo — talvez menos dentro da sala, talvez mais rente à terra, talvez mais no movimento de conduzir e atravessar. Sigo porque o ciclo não terminou. Vivo meu sonho de menina, na verdade eu habito no sonho sonhado. Sou professora e brincante.

E talvez seja isso que sustente a continuidade do ciclo: habitar sonhos. As crianças da Escola Escragnolle Dória, nos passeios, sempre me dizem que vão sonhar com aquele dia, e que, no sonho delas, eu estarei lá. Elas me devolvem a certeza de que podemos existir em futuros que não veremos acordadas, mas que nos guardam em suas noites como quem resguarda um fogo aceso. Sophia, ao defender seu trabalho, repetiu com a voz cheia de brilho que estava “vivendo um sonho”. Percebo então que nosso caminho, mesmo quando muda de direção, permanece atravessando a vida dos outros como rio subterrâneo. Sonho delas, sonho meu, sonho nosso. Um território onde começo, meio e começo se misturam. E seguimos rumo a 2026, sabendo que, se habitamos os sonhos de quem segue, é porque o ciclo não termina: ele apenas aprende novas formas de continuar.