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Diário Veronica Pinheiro

DE SOL EM SOL

By 7 de maio de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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DE SOL EM SOL
Veronica Pinheiro

07 de maio de 2024

 

Foto: Wagner Clayton

 

Todo MUNTU (ser humano) é o Sol vivo, percebido como um “poder”, “um fenômeno da veneração perpétua, da concepção à morte” e além. Uma vez trazido ao mundo físico se inicia uma tarefa sagrada (a mais importante para civilizações africanas): cuidar desse MUNTU para que ele brilhe como o Sol do meio dia.¹

Observe: a cosmologia africana dos Bantu-Kongo, ideia compartilhada pelo dr. Fu-Kiau, apresenta o cuidado com as crianças como uma arte que precisa ser honrada.

Pensando no universo escolar, ser professor de crianças é uma atividade considerada de menor prestígio na sociedade brasileira; uma atividade realizada geralmente por mulheres e por pessoas de baixo poder aquisitivo. Existe uma hierarquia estabelecida entre os profissionais de educação e quem leciona na Educação Infantil e Ensino Fundamental são desrespeitados dentro da própria categoria. É comum um professor universitário se ofender ao ser perguntado em que escola ele trabalha. “Escola? Não trabalho em escola. Sou professor da Universidade fulana de tal.”

Curiosamente, muitos professores que se apresentam publicamente como decoloniais (ou contra-coloniais) são apegados ao pensamento hierárquico europeu, que vê a educação infantil e o Ensino Fundamental como um lugar de menos prestígio intelectual.

A professora Jacqueline Siano esteve presente na minha banca de qualificação do mestrado, ela fez a seguinte observação: “Você pesquisa confluências afropindorâmicas e práticas contracoloniais no ensino. Você precisa voltar para escola!”

Voltei.

Volto prenhe de caminhos e possibilidades. Trago no coração algumas ideias para adiar o fim do mundo. Há quem diga que volto pluriversalizada. Eu digo que volto povoada. Povoada por seres, narrativas, tempos e espaços. Tenho andado cada vez mais acompanhada. Nesta volta, muitas memórias foram despertadas no corpo de carne e no corpo memória. Nessas memórias, conheci e despertei memórias solares.

Quem é o Sol? Quantas narrativas conhecemos sobre sua origem, a origem do mundo e sua participação como fonte vital de energia?

Eu trazia duas memórias solares: a de casa, repetida em versos e nas práticas diárias, que me dizia que nós éramos como o Sol; a da escola dizia que o Sol é uma estrela localizada na Via Láctea, a estrela mais próxima do planeta Terra e a maior de todo o Sistema Solar. A escola dizia que era impossível que eu fosse Sol. Como a escola é autorizada a dizer o que é certo e errado, esqueci que era Sol e fiquei com a versão da escola. Essa visão reducionista de existência apaga sóis em dia pleno.

Kuaray (Guarani); Abe (Desana); Mãyõn (Maxakali); Kamoi (Baniwa); Sol (Português); Bari (Huni Kuin); Pawa (Ashaninka); Wei (Macuxi) são mais que palavras utilizadas para designar o Sol; são epistemologias solares. Palavras geradoras, acompanhadas de vida e mundos. Tenho um gosto especial por narrativas que começam com “Antes o mundo não existia”. Esse tempo antes do tempo existir traz ensinamentos profundos de cuidado e manutenção da existência. Os mitos de origem não existem para alimentar os ouvidos do mundo, mas para vibrar vida.

Despertando memórias solares, alguns vazios foram preenchidos com escutas e pesquisas; em breve o Ciclo Sol apresentará uma série de falas sobre o Sol². O pensamento lá de casa reapareceu em livros e teses. “Deixa meu Sol aceso”, fala de meu pai, apresenta vestígios de uma filosofia antiga, trazida ao Brasil por pessoas negras durante a travessia do Atlântico entre os séculos XVI ao XIX (tráfico de pessoas promovido por Portugal é a expressão mais precisa). No pensamento Bantu-Kongo, quatro grandes “sóis” regem  os processos de formação e mudança. O primeiro (Sol Musoni) é o Sol do “ir para”, todos os começos; o segundo (Sol Kala) é o Sol de todos os nascimentos; o terceiro (Sol Tukula) é o Sol da maturidade, liderança e criatividade; o quarto (Sol Luvèmba) é o Sol da última e maior mudança de todas, a morte¹.

Nunca empreguei tanto a palavra Sol no plural quanto nesses últimos dias. Plural em significados e existências. Coexistências continuamente formando, mudando, expandindo. De sol em sol, se pensarmos no processo de solar de formação Bantu-Kongo, o Grupo Aprendizagens encontra-se no segundo sol. Estamos nascendo. Nascendo e propondo nascimentos. Para isso, temos semanalmente reuniões de planejamento e estudo (com pessoas da equipe Selvagem); mensalmente nos reunimos com os professores da escola parceira e com os voluntários do grupo.

 

Foto: Wagner Clayton

 

Nosso último rompimento, foi receber na escola a visita da ceramista Angélica Arechavala (voluntária que acompanhou o Grupo Crianças e agora apoia o Grupo Aprendizagens). Pode parecer simples, mas a escola está localizada numa região desfavorável para receber visitas. Nossa ideia é estreitar parcerias e criar uma rede orgânica entre territórios, isso inclui trazer pessoas de fora para conhecer a comunidade escolar e levar a comunidade escolar para conhecer outros lugares.

Para que mais um Sol vivo fosse incluído na mediação das oficinas de cerâmicas, contamos com a articulação da escola, que disponibilizou pessoas para buscar Angélica e trazê-la pelo caminho mais seguro. Ao compartilhar com um cientista a potência daquele encontro que durou 10 horas, recebi o seguinte comentário:

“Os objetos dobram o espaço-tempo, sentem essa curvatura e se movem de acordo. Você é um sol. A chegada da ceramista adiciona um novo sol além de você. Isso desloca a posição do primeiro sol, e principalmente dos demais planetinhas que são seus aluninhos kkkkkk que estavam acostumados à configuração anterior. Por isso, eles estavam mais próximos girando e orbitando em torno de você”.

O que teve de tão potente nesse encontro? Eu pude sentar e tocar em crianças que geralmente não me permitem muita aproximação. Crianças que conhecem o horror bem de perto confiaram em nós no último encontro. Era um ambiente de muita confiança e cuidado: direção, coordenação e professores nos acompanharam em todo tempo, em cada espaço.  A presença de Angélica dobrou o espaço-tempo, gerando deslocamentos solares.  Estamos caminhando para gerar Tukula, o Sol da maturidade. Que ele chegue em boa hora.

“O Sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” – Provérbio Africano

 

 

¹Fu-Kiau, Kia Bunseki e Lukondo-Wamba, A.M. KINDEZI: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças.  Com introdução de Marimba Ani. Tradução para o brasileiro por Mo Maiê. Rede Africanidades

²O Ciclo é composto por 19 falas pluriversais de Catarina Delfina Tupi-Guarani, Fabio Scarano, Moisés Piyãko (Ashaninka), Catarina Aydar, Carlos Papá (Guarani), Aliny Pires, Dua Busë (Huni Kuin), José Miguel Wisnik, Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Júlia de Carvalho Hansen, Francisco Baniwa, Aza Njeri, Anacleto Tukano, Carla Wisu (Dessano), Camila Mota, Marcelo Gleiser, Eduardo Góes Neves e Ailton Krenak.