Toda essa aparatosa topografia aparentemente cataclismática de montanhas agrestes, de penedos avulsos, de gigantescos paredões a pique, de vales profundos, de planícies e pântanos, resulta de um tectonismo inicial ocorrido há bilhões de anos, no berço da criação terrestre, e a um só tempo responsável por metamorfismos e estruturas que possibilitaram a formação das inigualáveis escarpas que tanto embelezam e celebrizam um dos mais afamados espetáculos naturais.
Alberto Lamego em O Homem e a Guanabara (1948)
Antes de Américo Vespúcio vislumbrar o paraíso, antes de ser uma terra cobiçada por franceses e portugueses no século XVI, ou mesmo o local da “civilização da palha” dos povos Tupinambá, o Rio de Janeiro foi o epicentro de um evento geomitológico que deu origem à vida na Terra. De acordo com os povos Tukano, Dessano e outros povos do Rio Negro, na Amazônia, a Baía de Guanabara é o “Lago do leite” onde chegou a canoa-cobra de sua travessia cósmica pela Via Láctea.
A história pode ser escrita em capítulos, já a vida não é linear. Cianobactérias, criadoras da fórmula fotossintética da vida, raros cavalos-marinhos, botos-cinzas, jacarés-do-papo-amarelo, canoas, memórias, mitos de origem coexistem com barcos a vela, lanchas, transatlânticos, tráfico de drogas, resíduos industriais, lama tóxica, cemitérios, vazamentos de óleos, esgotos e muito mais. A Baía de Guanabara é um ícone da complexidade produzida no Antropoceno.
Vale tectônico formado no Cenozoico, a Baía de Guanabara está entre dois blocos de falha geológica: a Serra dos Órgãos e diversos maciços costeiros, menores. É repositório de vida, já foi berçário de baleias, converteu-se em núcleo de negócios baleeiros, tornou-se o principal porto de metais preciosos, até hoje é porto por onde circulam dezenas de milhões de toneladas de produtos.
ENCONTRO ÁGUAMÃE – 25 de outubro de 2025
A Selvagem realizou, na tarde de 25 de outubro, o encontro ÁGUAMÃE, uma travessia pela Baía de Guanabara, que reuniu cerca de 200 pessoas em quatro horas de navegação entre Rio de Janeiro, Niterói e Paquetá. A bordo da barca Charitas, pensadores, artistas e lideranças indígenas compartilharam cantos, memórias e reflexões sobre a água como elemento vivo e em crise.
Em uma grande saudação aos povos e uma celebração à diversidade de narrativas, ÁGUAMÃE contou com a presença dos artistas, coordenadores e participantes das cinco Escolas Vivas: Guarani, Maxakali, Huni Kuin, Baniwa e Tukano-Dessano-Tuyuka. Na cosmologia dos povos do Alto Rio Negro, como contou João Paulo Tukano, a Baía de Guanabara é um lugar sagrado, presente nas suas narrativas de origem da humanidade, identificado como Lago de Leite: “Leite no sentido de potência, que sustenta e gera a vida”, contou João Paulo.
Ailton Krenak, líder indígena e cofundador da Selvagem, esteve ao lado do músico e pensador Mateus Aleluia, confluindo visões durante o passeio, que pelas palavras de Ailton se configura como um “gesto que reivindica a memória histórica deste território”. Mateus Aleluia trouxe o encantamento das águas através de suas canções durante a travessia, além de questionar as narrativas coloniais e retomar a ancestralidade dos cultos de origem africana: “Toda cultura vem de um culto. A vida em si é um culto — um religare. E só em 1978 o povo negro pôde praticar seu culto sem precisar pedir licença”.
A engenheira e doutora em geologia, Nuria Fernandez, falou sobre a gnaisse facoidal, “a mais carioca das rochas”, e que nos coloca em diálogo, por meio das pedras da Baía de Guanabara, com camadas profundas da origem desse território. Carlos Papá, coordenador da Escola Viva Guarani, compartilhou parte de sua pesquisa profunda que conecta linguagem, território e proteção: “Guanabara tem outra tradução em Guarani, ‘Kua-Gua-Mba-Ara’, algo como ‘abraço todos os dias’”.
A antropóloga Nastassja Martin refletiu sobre a crise civilizatória provocada pela ruptura com os elementos. “A água das fontes é o vetor de um novo nascimento iniciático. Mas o Ocidente a transformou em ‘recurso’. Nem a água, nem o ar, nem a terra, nem o fogo são mais animados — já não os escutamos.”
Durante o passeio, o encantamento se deu também por cantos indígenas de diferentes regiões do Brasil, como o do pajé Huni Kuin Dua Busë e de Netë, da Aldeia Coração da Floresta, Escola Viva Huni Kuin, no Alto Rio Jordão (AC); do artista e pajé Mamei Maxakali ao lado de Sueli, Isael e Isabelinha Maxakali, da Aldeia Escola Floresta, Escola Viva Maxakali, localizada na zona rural de Teófilo Otoni (MG); além das flautas japurutu tocadas por Francisco Fontes Baniwa e Idjahure Kadiwel, representando a Escola Viva Baniwa, localizada em Assunção do Içana (AM).
A artista Renata Tupinambá, integrante do Guanabara Pyranga: Encontro de Culturas da Guanabara, cantou as memórias da sua avó em Tupi, e em suas falas lembrou das mais de 80 aldeias Tupinambás que existiam no território da baía.
ÁGUAMÃE também dá origem a um filme a partir de registros sobre a travessia, em dezembro deste ano, e se desdobrará em um ciclo de estudos em 2026, publicado no site Selvagem e nosso canal no YouTube.
GALERIA DE FOTOS
Fotos: Caleidoskópica / Alex Ferro
CADERNO
Visões da Guanabara é fruto de uma pesquisa em livros, documentos, mapas e acervos, e composto por muitas vozes.
O caderno reúne diferentes perspectivas sobre o território da Baía de Guanabara, partindo da ideia de que o Rio de Janeiro é o epicentro do evento geomitológico, que deu origem à vida. A mesma baía é também uma encruzilhada, território de disputa histórica, invadido por europeus no século XVI, quando era circundado por cerca de 90 aldeias indígenas. Apesar das profundas transformações e desafios socioambientais, esta baía segue pulsando como símbolo de resistência e de múltiplos significados.
MAPA
Mapa com sobreposição de diversos tempos e informações. Incluímos, entre outras, formações geológicas, aldeias indígenas antes da invasão, fauna e a canoa da transformação. Para acessar os materiais de referência que consultamos durante a pesquisa, acesse o caderno VISÕES DA GUANABARA.
BEIRA D’ÁGUA – 03 de setembro de 2025
Uma roda de conversa sobre a Baía de Guanabara que aconteceu na BiblioMaison, no dia 03/09, entre Rafael Freitas da Silva, Ana Thereza de Andrade Barbosa, Emanuel Alencar e Val Quilombola. A conversa abriu uma travessia maior que desaguará no ÁGUAMÃE, dia 25 de outubro, nas águas da Baía de Guanabara.
BEIRA D’ÁGUA, como o nome sugere, é uma primeira aproximação da Baía a partir das aldeias indígenas que formavam uma civilização de palha desaparecida ao seu redor. Uma civilização que deixou mais vestígios culturais que arqueológicos. O encontro buscará os cruzamentos que evocam o espírito carioca e sua relação com as águas, através dos tempos. Junto aos convidados, vamos observar aspectos socioambientais, conhecer as disputas e os encantos dessa baía tão emblemática das complexidades do antropoceno.
Todas as falas foram gravadas e farão parte do ciclo de estudos Águamãe.
Fotos: Caleidoskópica / Elea Mercurio






















































