Skip to main content
Voltar
Início
Veronica Pinheiro

CARTA A CRISTINE TAKUÁ – com terra nas mãos e verde nos olhos

By 21 de outubro de 2024maio 5th, 2025No Comments

Saudações, querida Cris.

Suas palavras chegam sempre ao amanhecer. Com elas, os olhos desejam ser mar e marejam à medida que dançam entre suas delicadosas palavras. Saúdo os espíritos guardiões dos seres que guardam você em bom caminho.

Por aqui chove há dias. Escutei alguns humanos reclamando das chuvas; as aves, porém, estão tão felizes que cantam durante todo o dia. Junto às plantas do quintal, elas me lembram que a Terra também pode brincar com o céu. Com os pássaros aprendi a celebrar os dias. Em casa aprendi a celebrar os ciclos.

Ao ouvir você falando da consagração da Ka’a, me lembro das festas lá de casa. A festa agregava toda a comunidade, minha família participava de todos os processos da festa. Da costura da roupa ao preparo das comidas; da organização da festa à música do dia. Na festa, alguns preparavam instrumentos e tocavam. Tudo era preparado com muita concentração e rezos. A festa era a reafirmação dos nossos modos de vida. Minha mãe costurava para toda a comunidade, o pai de meu pai e meu pai preparavam instrumentos para toda a comunidade. Rezos, bênçãos e comidas eram para toda a comunidade. Agora, por aqui tudo se vende. De roupa a instrumento, de comida a ingresso para festa.

Estamos trabalhando para despertar entre as crianças a memória da força coletiva. Entre tantas coisas também haverá uma festa. Estamos desde o dia 03 de outubro celebrando a vida das crianças da escola através de oficinas, apresentações musicais, lançamento de livro, passeio e atividades de plantio.

Minha amiga, parece que a voz do vento voltou a falar com os moradores do Complexo da Pedreira. Juntou-se a nós Otávio e seus meninos, Davi e Marcos. Otávio e sua “Fórmula Mágica da Paz” têm afugentado a fome de dezenas de famílias. O segredo de Otávio está só no nome do projeto que ele lidera, pois tudo ele compartilha generosamente com todos que se aproximam dele.

Lembra que falei que havia entre o complexo de favelas da Pedreira uma faixa de verde cuidada por um homem? Achei o guardião daquela roça. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano da cidade do Rio de Janeiro, há um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, Otávio, que se reconectou com a terra, cuida e é cuidado por ela.

Continuo acreditando que verdejar, arvorecer, ativar e acordar memórias é trabalho para uma comunidade. No Brasil, apenas 34,5% das escolas municipais possuem área verde, sendo que a maioria das escolas com área verde possuem mais área com gramado do que com vegetação. Otávio, um homem coletivo, se relaciona diariamente com a terra e aceitou sonhar, trabalhar conosco e com as crianças no quintal da escola. Nosso sonho para a escola é o mesmo de Isael Maxakali: “Nosso sonho é pegar a terra e recuperar. Porque ela precisa ser curada, precisa de tratamento. Porque a terra é viva. Terra fala, terra olha a gente e terra grita. (…) Por isso que nós queremos reflorestar.

Tayana e Gerrie também estão nessa canoa cheia de sementes. Enquanto Otávio ensina a plantar cercado, Tayana e Gerrie plantam solto com as crianças no quintal. Com isso, já temos uma horta e muitas áreas semeadas ao redor da escola. Nesse movimento de reconexão com a terra, vejo a festa nos olhos das crianças. Os pequeninos, de 07 anos,  trazem roupinhas na mochila esperando a hora de ir pro quintal-roça, futura florestinha-escola. Há festa também nos olhos de Ivone, funcionária da escola e moradora da comunidade, que se emociona ao ver chegar terra fértil, sementes e mudas. Ivone também ouviu a voz do vento e, despertadas suas memórias de casa, tem nos ajudado a plantar e cuidar do quintal.

O quintal está se tornando uma escola dentro da escola. Nele o aprendizado está nas relações entre humanos e não humanos. Ganhamos uma sala de aula à sombra de uma frondosa Albizia Amarela. Todos os nossos movimentos de plantio têm sido acompanhados por um beija-flor que canta e nos observa de muitos ângulos.

Nossos dias têm sido assim: terra nas mãos e festa nos olhos ao som de pássaros. As crianças estão aprendendo com as mãos e estão criando memória no corpo junto ao corpo da terra. A festa nos olhos das crianças tem agregado a comunidade escolar e nisso meu coração tem se fortalecido.

Me despeço, minha querida mestra, desejando que os pássaros lhe contem segredos.

E que os encantados guardem seus caminhos.

Awrê.

 

________________

Otávio Souza, idealizador do projeto Fórmula Mágica da Paz, projeto iniciado como estratégia para autoprovimento de moradores que ficaram mais empobrecidos durante a pandemia de 2020. Assim como Otávio, muitos passaram a pegar alimentos descartados em caçambas do CEASA Rio; no entanto, junto com seu amigo Matheus de Souza, decidiu se voltar para a terra e começar a plantar num terreno dentro da favela. Hoje, além de aprender a cuidar da terra, o projeto vem ajudando jovens a ter acesso a uma renda e a alimentos frescos.

Tayana Simões, bióloga e educadora ambiental.

Gerrie Schrik é educadora e tradutora, sempre fazendo trilha, passarinheira e contadora de histórias, que ama ler e arte – morando numa pequena agrofloresta à beira de um ribeirão na bacia do Rio Piracicaba. Ela tem orientado e organizado tecnicamente as ações de plantio na escola.