BRINCAR E RECRIAR: QUANDO AS CRIANÇAS CONJUGAM VERBOS EM TEMPOS CIRCULARES
Veronica Pinheiro
30 de outubro de 2025

Chegamos em outubro de 2025 para viver a Águamãe. À beira da Baía de Guanabara, berço de mundos, as crianças recriam o tempo brincando.
O Grupo Aprendizagens acompanhou de perto a residência Casa Escola Viva, coordenada por Cristine Takuá. Acompanhar de perto é escola e aprendizagem. Tem um tantão de gente seguindo ao lado, mas que não está perto. Vivemos tempos de pessoas cansadas com vistas cansadas, que não conseguem ver de perto. Um tempo cheio de inquietações, onde adultos especulam conclusões e registram tudo em celulares e aparelhos eletrônicos. Adultos confiam suas memórias em nuvens, em memórias externas e HDs. Viver esses dias acompanhando crianças, jovens, adultos e idosos nos mostraram que as crianças ainda escrevem memórias no corpo. As crianças, diante do encontro com aquilo que elas não conseguem nomear, silenciam, abrem os olhos e permitem que as informações sejam guardadas sob a pele. Sem pressa, elas imaginam, tocam e são tocadas.
A residência artística Casa Escola Viva começou no dia 13 de outubro e no último dia, os representantes das Escolas Vivas, que passaram duas semanas acordando e tecendo memórias, receberam as crianças da favela Vila Kennedy no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dessa vez, as crianças da Pedreira não conseguiram chegar ao MAM para viver esse encontro com as Escolas Vivas. A cidade do Rio de Janeiro não tem permitido que crianças de algumas regiões da cidade consigam transitar em segurança. Diante da possibilidade de adiarmos a oficina que estava compondo o quadro de programações da residência, lembramos de um grupo de crianças coordenado pela nossa querida voluntária Greice Souza. Greice e seus filhos moram na Vila Kennedy, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Nessa favela, além de todos os desafios sociais e ambientais, existe uma escola de samba infantil, fundada em 1991, chamada “Ainda existem crianças na Vila Kennedy”. Esse nome anuncia que ainda existe vida e haverá Sol e amanhã mesmo em dias difíceis.
As crianças da VK, Greice e seus filhos estão presentes na Selvagem desde o início do Grupo Crianças. Com eles, vivemos a primeira oficina e o primeiro passeio. Eles voltam à Selvagem no Ciclo Águamãe, vibrando toda força e potência de vida de sempre. Eles chegaram após o almoço, felizes, com bolas nas mãos e mochilas coloridas. “Eles chegaram”, assim escrevi a Madeleine por mensagem.
O Sol brilhava num céu azul quando as crianças chegaram. As águas sorriam com movimentos delicados de boas-vindas. Para esse dia, amigos de longe e companheiros de sempre. Diego Brito veio do Tocantins com sua viola de Buriti para dar melodia ao dia. Marcela Amaral, de Goiânia, trouxe sua pedagogia de Atrevimentos. Ambos brincantes que tecem diálogos profundos com universidades, kilombos e aldeias.

Carol Delgado trouxe a bagunça e a certeza de um dia incrível. Greice e Thainá trouxeram as crianças.
Thais Desana, artista residente representante da Escola Viva Bahserikowi Centro de Medicina Indígena, Tukano-Dessano-Tuyuka, recebeu as crianças na Canoa-Cobra-Pedra e conduziu nossa visita ao ateliê-exposição Casa Escola Viva como quem recebe em casa primas e primos. Com suas memórias acordadas e sabedora de sua trajetória e nação, Thais falou do início dos tempos, das canções de seu povo e de como todas essas coisas habitam em suas pinturas. Todas as obras da exposição foram apresentadas às crianças, obras das Escolas Vivas Guarani, Maxakali, Tukano-Desano-Tuyuka, Huni Kuin e Baniwa. Navegamos entre yãmiy, tempos e dimensões.
Canoa em movimento, nossa mestra Thais Desana nos contou sobre o Lago do Leite, que, para nós, se chama Baía de Guanabara e sobre os olhos dos seres e objetos que observamos. As pinturas de Thais também têm olhos, elas olham ao mesmo tempo que são olhadas. Enquanto as crianças se permitiam ouvir, sentir, olhar e ser olhadas, os adultos filmavam com câmeras e celulares. Enquanto os poros e pupilas dos pequenos tentavam captar a sonoridade e cores dos acordes desconhecidos produzidos pelas vibrações das linhas de pesca – que, esticadas na viola de Buriti, geravam ondas sonoras que pescavam corações disponíveis –, em algum lugar de uma memória mecânica, fria e impessoal, os adultos captavam sons amplificados pela caixa de ressonância feita com a madeira da palmeira do Buriti.

O encontro entre as crianças da cidade do Rio e as Escolas Vivas nos deu a feliz certeza de que as crianças não adiam a vida. Elas não coletam informações para ler, ouvir e assistir depois. As crianças vivem um presente circular e conseguem brincar, ressignificando e criando memórias. Elas estavam. Estando, visitavam as memórias de Thais e sonhavam futuros para elas e para as águas. Ouvi de uma amiga há um tempo que o melhor lugar para se estar é ao lado de uma criança. Em nossa última oficina, ao lado das crianças, percebi o tanto que estamos preocupados com futuros possíveis e não estamos dando a devida atenção ao agora. As crianças porém estão aqui, vivendo o hoje, brincando de ser sendo. No MAM, elas brincaram de observar e pintar a Baía de Guanabara. Elas brincaram de ser Thais Desana. Brincaram de criar um Museu de Arte Moderna na Vila Kennedy. Enquanto escrevo essa página de diário recebo mensagem das crianças dizendo que precisam criar mais obras para contar na favela histórias de um mundo bonito. Convite aceito, em breve contarei sobre essas novas andanças.

Fotos: Ana Rezende
________
Diego Brito, @projetoveredas ; Identidade cultural e musicalidade: um estudo sobre a viola de buriti na comunidade quilombola Barra de Aroeira no Tocantins
Marcela Amaral @encruzilhadasdosonhar ; Pedagogias do Atrevimento

