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Veronica Pinheiro

À MARGEM DO RIO

By 29 de novembro de 2024maio 21st, 2025No Comments

Todos os dias da semana, desde fevereiro, mergulho no asfalto que leva à favela da Pedreira. Ora corpo e pensamento se deslocam pela superfície de betume espesso, ora o pensamento se desloca solitário por caminhos suspensos. Por muitos dias, as palavras surgiram antes do Sol. O luar era festejado com agradecimentos – retornar era sempre uma dúvida. O Sol era recebido com rezos e pedidos repetidos – “dobra a força do braço, não me deixe ir só”.

Tal qual a menina de capuz vermelho, segui estrada afora. Tudo poderia acontecer na Estrada de Botafogo. No entanto, diferente da menina de capuz vermelho, pela estrada afora, nunca fui sozinha. Entre pontos, no texto e de ônibus, seguia um corpo no mundo, disposto a fazer amizade com lobos e conhecer vovós.

Como alguém que leva e traz notícias, ouvi, anotei, observei, perguntei pouco para não direcionar a voz ouvida. Olhos, ouvidos e coração estiveram atentos ao caminho. Um caminho fluido, cheio de beiradas, encruzilhadas e barricadas. Lugar de intersecção onde a voz da ventania ainda fala no coração das crianças. Seguimos pela margem da cidade do Rio de Janeiro, quase chegando à Baixada Fluminense – a região da Pavuna, onde está localizada a escola, é o limite da cidade do Rio de Janeiro com a cidade de São João de Meriti.

Na margem do Rio, encontramos uma vida empurrada para a invisibilidade. Uma vida que não desejo a criança alguma. Havia, porém, tanto gosto em se viver que as histórias vividas à margem se espalharam em páginas de diários por aí.

Diários de Aprendizagens é uma série de anotações e pensamentos. Um emaranhado de falas e de narrativas. É um tecido de sorrisos largos e abraços de braços curtos. E é a reafirmação da vida e a reivindicação do bem-viver na escola. Ouvi dizer que “reafirmação da vida” é o novo clichê. Que seja! Num território marginalizado, marcado pela morte precoce de corpos e sonhos, saudamos a vida diariamente com leituras, estudos, brincadeiras, oficinas e passeios.

As crianças da Escola Municipal Professor Escragnolle Dória me devolveram o gosto pela escrita e pela sala de aula. Com Cristine Takuá ampliei o conceito de sala de aula e tive coragem de romper com as margens estabelecidas pelo currículo. De maneira geral, o processo de escolarização desterritorializa dentro do território. Deixa a identidade da criança em segundo plano, determina o que é importante ou não para se saber, determina o que comer, como se vestir, distancia o sagrado e impõe novos modos de vida.

As crianças e Cristine me convidaram a confiar na vida, a observar a copa das árvores e a ouvir o vento. Com elas, fui sumaumana, formiga e passarinho. A Escola Viva, trazida na voz e nos gestos de Cristine Takuá, é uma escola de fortalecimento de território, uma escola de práticas e compartilhamento. A força da Escola Viva está na escuta e no despertamento de memórias. Não temer despertar memórias é a maior das aprendizagens.

Nenhuma Escola Viva é igual a outra, não há intenção em criar padrões. O território e as memórias de vida presentes nas muitas camadas guardadas no corpo do tempo, no corpo da terra e nos corpos-territórios apontam caminhos que precisam ser observados e compreendidos.

Nego Bispo diz que “quando a gente confluencia, não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende”.

O que você leu ao longo desses meses foram páginas que renderam do encontro de uma professora com uma sábia que a convidou a seguir de canoa. Cada texto aqui foi precedido por água. Da margem de cá, me despeço com asfalto sob os pés e águas nos olhos.

Awrê!

Até o próximo ano letivo.