A BELEZA DA RESPOSTA DAS CRIANÇAS
por Veronica Pinheiro
16 de setembro de 2024
Ọkàn ríran ju ojú lọ
O coração pode ver muito mais profundamente do que os olhos

A educação se dá nas relações cotidianas, para além dos muros da escola. Em sala de aula, os gestos, as atitudes, o tom de voz e o olhar são tão importantes, ou mais, quanto os conteúdos curriculares. As informações contidas nos gestos educam, acolhem, esperançam. O currículo forma para uma vida hipotética, futura, prepara para provas que talvez um dia um aluno venha a fazer. Os gestos educam para o presente, dilatando através da relação a complexidade do registro que busca compreender tudo o que acontece no ambiente e no próprio corpo. Lydia Hortélio diz, e eu concordo:
“Ninguém nasceu pra fazer vestibular. A gente nasceu pra ser gente, para se expressar em plenitude, liberdade, em inteireza com todos os talentos que o ser humano tem.”
Em tempos de emergências, penso em como alinhar gestos e conteúdos. Em tempos de emergências, como tornar a escola de ensino regular um lugar onde crianças e professores possam ser gente, se expressando em plenitude e liberdade? Meu querido mestre Nego Bispo falava que, nessa guerra das denominações, precisamos aprender o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las. Enfraquecer o que disseram sobre nós e buscar na ancestralidade entendimento e profundidade do que somos. A escola como lugar de ensinamento de denominações separa quem ensina e quem aprende, como se um “discente” só pudesse ser aluno e um “docente” só pudesse ser professor.
O termo “discente” tem sua origem no latim, deriva do termo “discens”, que é o particípio presente do verbo “discere”, que significa “aprender”. E “docente” tem origem no latim “docens”, que é o particípio presente do verbo “docere”, que significa “ensinar”. Na dinâmica da vida cotidiana, somos compartilhantes. Ensino e aprendizagem é relação de vida. Compartilhar é muito mais do que representar papéis sociais: não há imobilidade nas relações de compartilhamento. Ensinamos e aprendemos mutuamente, continuamente. À medida que os meses passam, a relação com as crianças na favela da Pedreira me mostra que a beleza da resposta das crianças está reestruturando a forma como eu me relaciono com elas e com a vida. As crianças me acolhem em seus braços curtos com cartinhas, desenhos e palavras faladas. Elas me ensinam a respirar em meio à fumaça capitalista que sufoca a vida.
“Tia, seus brincos são legais.”
“Tem gente que acha meus brincos estranhos.”
“Gente adulta, né? A gente acha lindo. Tem mensagem, né?”
“Todos os brincos dela têm mensagem. Os de natureza, os de aldeia, os de concha.”
“É sério que vocês ficam olhando meus brincos? E como vocês sabem que têm mensagem?”
“Porque a gente sentiu.”
“Eu não senti nada”, disse Alessandro. “É só uma folha.”
“Sim. É aya.”

Por conta de meus brincos, essa semana, falamos sobre Adinkras. Os Adinkras, símbolos gráficos originários da cultura Akan, de Gana, são um exemplo de como as formas de comunicação e registro não precisam se submeter à linguagem escrita convencional. Esses símbolos guardam filosofias, memórias, histórias, funcionando como um tipo de escrita visual repleta de conhecimento e identidade cultural. Nosso imaginário, construído pela educação colonialista, nos condicionou a pensar que a oralidade era o único pilar de registro para transmissão de conhecimentos em África, mas não é. Existem diversidades de escritas africanas e ameríndias.
Os Adinkras são escritas para serem lidas com o coração e não com os olhos. O sufixo “kra” é traduzido como alma. Esses símbolos estão relacionados à comunicação com antepassados. Adinkra é como um adeus à alma. O termo “dinkra” significa “se despedir” ou “dar adeus”. Nele, quem fica diz a quem foi que pode ir em paz, porque aprendeu os ensinamentos com o coração e sabe o que fazer para continuar seguindo. “Aya” é um símbolo Adinkra que representa uma folha de samambaia. A palavra também significa “Eu não tenho medo de você”. Simboliza resistência, força física. Ele é associado à ideia de superar dificuldades e se adaptar às adversidades.
“Tia, pra quem você está dizendo que não tem medo?”
“Não entendi.”
“Aya significa eu não tenho medo de você. ‘Você’ é quem? De quem você não tem medo? E precisa usar o brinco pra dizer que não tem medo?”
Não ousei responder de primeira. Dada a pausa, Ester continuou:
“Tia, todo mundo tem medo, mas, quando crescer, passa!”