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Diário Cristine Takuá

TRAMA QUE TECE A VIDA

By 2 de maio de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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TRAMA QUE TECE A VIDA
Cristine Takuá

02 de maio de 2024

 

Arte: Rita Huni Kuï

Teia da vida

Somos um emaranhado de fios

de sentimentos entrelaçados energicamente

A cada dia aprendendo

a tecer a grande teia da vida

Fia Fia Fia o Fio

Tece tece tece a mão

A base da trama 

Que colore essa canção.

Entre teias de aranhas

E profunda miração

As artes vão brotando

Fiando, tingindo e tecendo o algodão.

A floresta inspira o artista

Que medita e se inspira

Refletindo em sua bela criação

Mensagens ao mundo de respeito e união.

A arte traz a potência da cura

O eco da política em sua ampla concepção 

Criativa e transformadora.

O artista é um semeador,

Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas 

E com seus saberes e fazeres ancestrais 

Toca a alma e descoloniza a mente 

Há séculos moldada por uma 

Monocultura do pensamento

A arte tem a possibilidade 

de metamorfosear as relações

Entre o céu e a terra

Entre o visível e o invisível

Nos mostrando outros caminhos 

Outras realidades possíveis

Num manancial intelectual e criativo 

Que habita na complexa e bela existência 

dos povos todos que resistem

com seus cantos, rezas, artes e filosofias.

A estética da floresta é múltipla

E dialoga com conhecimentos

Que não estão nos livros e nem nos museus

Vivemos uma criminalização epistêmica.

Uma violência contra as ideias 

Contra o pensar 

E isso reverbera no útero da terra 

Machucado de tanto nos abrigar 

Que saibamos despertar as lembranças 

E voltar a tecer boas e belas palavras 

E tecidos coloridos para reencantar a vida.

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Fotos: Kawa Huni Kuï

 

A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.

Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.

 

Arte: Rita Huni Kuï

 

Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.

Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.

 

Foto: Cris Takuá

 

Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.

A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.

 

Foto: Carlos Papá