TRAMA QUE TECE A VIDA
Cristine Takuá
02 de maio de 2024

Arte: Rita Huni Kuï
Teia da vida
Somos um emaranhado de fios
de sentimentos entrelaçados energicamente
A cada dia aprendendo
a tecer a grande teia da vida
Fia Fia Fia o Fio
Tece tece tece a mão
A base da trama
Que colore essa canção.
Entre teias de aranhas
E profunda miração
As artes vão brotando
Fiando, tingindo e tecendo o algodão.
A floresta inspira o artista
Que medita e se inspira
Refletindo em sua bela criação
Mensagens ao mundo de respeito e união.
A arte traz a potência da cura
O eco da política em sua ampla concepção
Criativa e transformadora.
O artista é um semeador,
Diálogo com morcegos, jiboias e aranhas
E com seus saberes e fazeres ancestrais
Toca a alma e descoloniza a mente
Há séculos moldada por uma
Monocultura do pensamento
A arte tem a possibilidade
de metamorfosear as relações
Entre o céu e a terra
Entre o visível e o invisível
Nos mostrando outros caminhos
Outras realidades possíveis
Num manancial intelectual e criativo
Que habita na complexa e bela existência
dos povos todos que resistem
com seus cantos, rezas, artes e filosofias.
A estética da floresta é múltipla
E dialoga com conhecimentos
Que não estão nos livros e nem nos museus
Vivemos uma criminalização epistêmica.
Uma violência contra as ideias
Contra o pensar
E isso reverbera no útero da terra
Machucado de tanto nos abrigar
Que saibamos despertar as lembranças
E voltar a tecer boas e belas palavras
E tecidos coloridos para reencantar a vida.
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Fotos: Kawa Huni Kuï
A tecelagem manual é uma arte que acompanha o desenvolvimento do ser humano há muitas gerações. Os diversos povos, de acordo com sua cultura, seu clima e sua região, desenvolveram o processo de tecer, fiar e tingir para produzir tecidos. Uma forma de linguagem ancestral que transmite narrativas repletas de sentidos e encantos. Para alguns povos, a aranha foi quem ensinou a tecer; para outros, a jiboia; para outros, pássaros que vão fazendo seus ninhos tecendo fibras e galhos. São ensinamentos muitas vezes passados do mundo espiritual para os humanos.
Para as mulheres Huni Kuï, o canto é parte do processo de tecelagem: durante a colheita, descaroçamento, bater e fiar das fibras de algodão, as artesãs cantam pedindo à força das aranhas para tecer rapidamente, já que, segundo sua cosmologia, o fio colhido pela aranha já saía pronto, sem a necessidade de bater ou fiar.

Arte: Rita Huni Kuï
Para que as artes indígenas continuem existindo, há a necessidade de que existam as florestas. O modo como a sociedade se desenvolveu nos faz esquecermos de quem realmente somos, não deixando de olhar para o fundo de nossa essência, para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão desencantando a humanidade que sonhamos ser.
Um dos principais saberes que as sociedades indígenas têm e que torna seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a humanidade e o restante do cosmos. A existência de um equilíbrio, em que todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, os anciãos e pajés, mas todos; jovens, crianças, formigas, abelhas, árvores, todas as formas de vida.

Foto: Cris Takuá
Para os povos indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está pra acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que com sua delicadeza e sabedoria vão nos guiando e nos ensinando como bem viver.
A arte brota de uma memória muito antiga e as tramas que se desenrolam de um processo criativo de imaginação mostram o potencial que habita no interior de cada tecelão. Entre sonhos e mirações vão se revelando formas e sinais, que refletem da natureza sua origem de criação, pulsando para a vida o sentido dessas relações.

Foto: Carlos Papá

