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Diário Veronica Pinheiro

TEM QUE TER OLHO PARA VER MIUDEZA

By 21 de agosto de 2025novembro 27th, 2025No Comments
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TEM QUE TER OLHO PRA VER MIUDEZA
Veronica Pinheiro

21 de agosto de 2025

 

As crianças choram. E, em gotas salgadas, comunicam e expressam necessidades físicas e emocionais. É uma forma de liberar tensões e dizer “algo está me incomodando”. Se o choro é comunicação, ele sempre diz algo. Pense no desconforto de ser deixado aos cuidados de pessoas desconhecidas sem o seu consentimento por horas, cinco dias por semana. As crianças estão começando a frequentar ambientes educacionais formais cada vez mais cedo. Chamamos de “período de adaptação” o processo de iniciação da criança na escola ou creche. Resumidamente é o momento que pais e crianças precisam para se adequar às novas relações e rotina.

Sobre as crianças que param de chorar mais rapidamente dizem “essa criança está adaptada”.

Hoje questiono o quanto de silenciamento há na tal adaptação. Uma criança adaptada é diferente de uma criança acolhida. Quando o bem-viver não faz parte das motivações institucionais, basta saber se uma pessoa (seja criança ou adulto) está adaptada à dinâmica estabelecida; porque estar adaptada é diferente de estar feliz. Os humanos precisam dar utilidades às suas práticas e, assim, vão adaptando os outros humanos ainda na infância.

Há dois anos conhecemos Kayque. Ele, de tempos em tempos, volta a chorar na escola. Às vezes ele chora muito. Sempre que conversamos sobre seu choro na escola, ele me responde: “Você sabe que eu não consigo ficar muito tempo. Eu me irrito. Eu choro.” Aprendemos com o choro de Kayque a insistir em comunicar o que incomoda. Ele precisa se adaptar a uma estrutura que não se adapta a ele.

Depois do último dia de choro e conversa, fomos à inauguração do laboratório de leituras da natureza.

O Grupo Aprendizagens está montando um laboratório com microscópios para ler folhas de plantas na Escragnolle. Um espaço destinado à observação e leitura, onde, a nosso modo, vamos aprendendo a entender o que nos comunicam as plantas do quintal da escola. A turma de Kayque tinha como atividade observar a Erva-cidreira que perfuma a entrada da escola. Primeiro, eles tocaram a planta, acariciando relevos e texturas; depois cheiraram folhas, flores e galhos. Em seguida, desenharam o que viram. Kayque, por questões motoras, escolheu não desenhar, mas acompanhou as atividades. Os alunos pesquisaram e conversaram sobre plantas que curam enquanto aguardavam, com uma certa ansiedade, o momento de observação no microscópio.

Quando anunciado que nos microscópios poderíamos ver coisas muito, muito pequenas, Kayque voltou a chorar. Voltou a comunicar. Ele está aprendendo a dar palavra e significado ao que sente. Dessa vez, ele parecia triste e disse: “Não posso correr nem fazer um monte de coisas. Agora também não vou poder ver quem mora na planta. Não vou conseguir olhar no ‘telescópio’.” E concluiu: “ Eu uso óculos, nem todo mundo tem olho pra ver miudeza”.

O choro era porque ele não queria ficar de fora de uma experiência que, um dia, viu na televisão. Ele também queria ver quem morava na planta, como as outras crianças de sua turma. O menino se acalmou quando soube que o microscópio da escola era diferente daquele do livro e do filme; no lugar das lentes oculares, o nosso microscópio tem uma tela.

Aparelhos ligados, deixamos que a curiosidade conduzisse a pesquisa dos pequenos. A diversão da descoberta tornava o estudo mais bonito. Naquele momento, Kayque e seus amigos viram o que conferia maciez à folha da erva cidreira: “Essa folha tem pelinhos”.

“A folha não é toda verde como o olho da gente vê. Tem amarelo e branco”.

“A folha mais verde é mais macia, tem mais gotinhas brancas.”

A cada miudeza identificada, os substantivos eram minuciosamente adjetivados pelos pequenos pesquisadores.

“A tia falou que tem seres morando nessas folhas. Temos que descobrir quem são!”

A folha de sempre, a mesma folha de cidreira conhecida das crianças, era vista pela primeira vez numa lente de aumento. E, como bem resumiu Kayque, a lente servia para ver a miudeza que o olho não vê. Milena foi a primeira a perceber os seres nas folhas. Ela, que geralmente demonstra impaciência diante das propostas, estava em silêncio tentando ver com olhos, ouvidos e narinas. As palavras só encontraram lugar na boca da menina quando ela identificou pontos iguais que pareciam minhocas. “Preciso aumentar a imagem! Falem pra folha não se mexer. Silêncio. Eu vi! É amarelinho fraco, mexe igual cobra. Tem um monte deles aqui. Não estamos sozinhos!”

Encontrados os seres que moravam nas folhas de cidreira, a pesquisa seguiu na busca do “nome certo para chamar as minhocas amarelo-fraco”. Germes, bichos, bactérias, minhocas, micro-organismos. A experiência ficava mais bonita com o passar do tempo. Narrativas, histórias de como aqueles seres chegaram ali, hipóteses e fabulações criavam registros sensíveis entre as crianças. A folha da planta era o livro denso a ser lido sem pressa, pois a aprendizagem envolve um sistema complexo de interações. Ao estudar a folha com curiosidade e interesse, as crianças podem desenvolver habilidades cognitivas, emocionais e sociais essenciais. As descobertas, mesmo as mais simples, estimulam o pensamento crítico, a linguagem, a coordenação motora e a capacidade de resolver problemas.

O choro de Kayque deu lugar a perguntas. E a pesquisa iniciada, a um desafio. Ter olho para ver miudezas não foi suficiente para o menino. A ação de ver não se encerrou em si. Ver miudeza não foi o fim, mas o começo de uma jornada ativa e inventiva. Agora que vimos, queríamos saber mais sobre os pequenos seres vistos. As crianças nos ensinam que depois de visto não é possível ignorar a existência de um ser. E como não caminhamos sozinhos, as imagens feitas pelas crianças foram enviadas para um biólogo doutor em minhocas. Para surpresa das crianças, os seres não eram minhocas e sim “colêmbolas”, pequenos artrópodes importantes para a manutenção dos ecossistemas.

Daí em diante a pesquisa virou rotina, e ver miudezas tem se tornado um exercício diário. Há mais de um mês não vemos Kayque chorar. Esperamos que ele esteja se sentindo acolhido.

 

Fotos: Veronica Pinheiro

Vídeo Colêmbolos