TABACO, MESTRE DO SABER
Cristine Takuá
09 de maio de 2024

Foto: Carlos Papá
Curandeiro ancestral
O sopro do cachimbo
O sopro do rapé
O sopro do amor
Das palavras
Das canções que
Explodem do universo
Interior das inquietações íntimas
De nosso Ser…
O sopro limpa
Alivia e dissipa
As mágoas e as ansiedades.
A maldade existe!
Mas não é nada comparada
À força que habita na fumaça
Das medicinas sagradas
Que através de seu sopro
A tudo purifica e transforma
O sopro que como um impulso
Sai em forma de palavras em movimento
Ecoa pelos quatro cantos desse universo
Em profundos momentos .
É necessário cantar mais
Proferir mais palavras de amor
É necessário soprar cura a tudo e a todos
A ilusão persiste em perseguir
A matéria humana
Mas o verdadeiro Amor habita
Na sensível sabedoria
Das pequenas coisas
Dos pequenos atos
Das profundas ensenhanças
Dos sonhos e das crianças
Que revelam a cada novo amanhecer
A extraordinária beleza
De ser e existir plenamente.
O sopro me inundou a alma
Nessa noite silenciosa e fria
E através do sopro
Vi sua bela forma serena e tranquila
Me mostrando os caminhos
Me revelando os mistérios
Me apurando os sentidos
O sopro me aliviou
Me curou
E alegrou
E me fez poetizar ao amanhecer
As cantigas do bem viver!!!!!
(Sopro de palavras recebidas num amanhecer após um ritual de cura com tabaco)

Foto: Cris Takuá
Há milhares e milhares de tempos em meio ao escuro surgiu a vida e todos os seres que habitam ao nosso redor. Cada ser vegetal, animal, mineral são espíritos que convivem num profundo emaranhado de saberes, como uma grande teia onde tudo está conectado. Tudo que habita na Terra tem seu guardião e dono. Os Guarani chamam de Ija, os Maxakali de Yamiyxop, os Huni Kuin de Yuxibu, os Yanomami de Xapiri. Cada povo nomeia esse ser e mantem relação de profunda comunicação no mundo espiritual.
Não respeitar esses seres pode nos levar ao adoecimento. Por isso, as crianças precisam ser ensinadas desde pequenas a pedir licença por onde caminham, saber entrar e saber sair da floresta, da cachoeira, da montanha. Respeitar esses seres espíritos significa ter boa vida em equilíbrio e saúde.
Existem algumas plantas de poder, que também são chamadas de mestras, que nos mostram os caminhos, nos colocam em diálogo com os seres espíritos e também nos curam quando afetados por algum mal espiritual.
Muitas culturas indígenas em todas as partes do mundo historicamente fazem uso do tabaco para as suas práticas de cura. Essa planta sagrada está presente em culturas ancestrais em praticamente todos os continentes. Uns a utilizam em cachimbos que, através da fumaça baforada, proporcionam uma comunicação espiritual. Outros sopram o rapé. Ela pode também ser mascada ou tomada como água de tabaco para purga, proporcionando limpezas profundas. Também tem o uso externo como cataplasma. São muitos os usos desse ser.
Ailton Krenak, no Caderno Selvagem Entrar no mundo – Conversas sobre “Plantas Mestras”, em que dialoga com Carlos Papá, diz: “Aprendi então a fazer uma coisa que ainda não ouvi ninguém falando, que é de ler o tabaco. Sei que tem gente que lê borra de café, que lê outros movimentos na água. Mas só experimentei essa coisa de ler a mensagem do tabaco dichavado, sem nenhum uso, só ali olhando para ele me mostrando coisas. Foi muito bom. É provável que outras pessoas já tenham também vivido essa experiência em outros contextos, do tabaco ser essa voz de saúde, essa imagem ativa. Não é uma coisa inerte, mas é algo vivo. É claro que quem faz o uso ritual dele, o uso cotidiano dele, tem outras experiências.”
Percebemos, no entanto, que esse ser sagrado vem sendo tratado de forma desrespeitosa pelas sociedades humanas. As crianças crescem com medo do tabaco, pois são ensinadas que ele mata, causa câncer ou problemas pulmonares. Essa afirmação é carregada de um desconhecimento do uso dessa planta, pois, para muitas culturas que fazem uso ritualístico do tabaco, ele cura.
Tomio Kikuchi, em seu livro Essência do Oriente, diz: “Segundo o princípio Único da ordem do Universo Infinito, isto é, a dialética prática Ying-Yang, fumar tabaco é classificado na categoria Yang… Deve-se ter compreendido que fumar é yanguinizar-se. O câncer sendo Yinguinização explosiva, dilatação contínua (dominado que é pela força centrífuga Ying, dilatadora) será contrariado em seu desenvolvimento pela absorção da fumaça Yang constritora. Esta pode levar a sua regressão e finalmente à reabsorção… nós podemos declarar, com toda certeza, que fumar o tabaco é sobretudo recomendado para cancerosos como para todos aqueles que desejam que fortificar sua imunidade contra o câncer.”
Refletir sobre a profundeza dos seres plantas nessa relação íntima com nossas vidas significa mergulhar na ciência da floresta, que, ao longo de séculos, vem sendo ocultada e ignorada pela ciência capitalista e ocidental. Há um saber que rege comunicações muito sensíveis feitas através de tecnologias ancestrais, como a telepatia, a intuição e os sonhos. Os grandes rezadores e rezadoras, curandeiros e curandeiras passam tempos de suas vidas em processo de preparação para alcançar o entendimento para dialogar com as plantas professoras e possibilitar a cura aos humanos.
Ainda no diálogo Entrar no mundo, junto a Ailton Krenak, profundos pensamentos foram trazidos por Carlos Papá para que possamos sentir a delicada relação do tabaco para o povo Guarani.
“O petyngua leva as mensagens diretamente do Nhanderu. E Nhanderu vai te guiar. E essa fumaça que você solta, de dentro para fora leva o pensamento, o sentimento. E a fumaça vai pairar por todo o universo. Vai se misturar com o vento. Vai se misturar com o aroma do ambiente. Com isso você vai se fortalecer cada vez mais. Mas isso você vai entender melhor quando tiver seus filhos. Através do tabaco e da fumaça vinham mais mensagens. Pela embriaguez do tabaco, eu comecei a perceber e entender os códigos da fumaça na medida que você bafora. A fumaça começou a abrir os códigos. Acabei entendendo esses códigos… E vinham as falas antigas, falas como se os grandes pajés se manifestassem. Senti uma força muito grande, me senti gigante. Não sentia mais meus pés no chão. Eu me senti… Parecia que eu tinha capacidade de voar. Assim, comecei a perceber que o petyngua é um instrumento que cura, que faz com que você entenda todos os códigos do tempo. Foi aí que também compreendi o que nós chamamos de teko axy. Teko axy quer dizer corpo imperfeito. O vento traz e leva as mensagens. A fumaça do pety, que é o tabaco, essa fumaça quando pensamos, leva o pensamento e paira para que o vento traga respostas.”
Através desses pensamentos trazidos convido a todos a se despir das camadas de formatação mental que recebemos desde criança. Que comecemos a repensar nossas relações com o escuro, com o Sol, com a chuva, o vento, o tabaco, a coca e tantos seres que desaprendemos a respeitar e com os quais podemos sim conviver de forma harmoniosa. A industrialização capturou algumas plantas mestras, cabe a cada um de nós reaprender a nos relacionar com cada uma delas.

Fotos: Cris Takuá

