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Diário Veronica Pinheiro

“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS”

By 26 de março de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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“NA FLORESTA, EU CONSIGO FECHAR OS OLHOS
Veronica Pinheiro

26 de março de 2024

 

Desenho colorido por Manuella 10 anos

 

Oficina 1 – O sol e floresta

Quando conectamos os seres urbanos que somos com a natureza que também somos, pegamos o caminho de volta pra casa. Voltar é um movimento tão importante quanto ir. É comum na educação falarmos de “progresso”, “avanço” e “desenvolvimento”. Parece que a vida é um movimento só de ida.

“Investir no seu desenvolvimento, com um olhar atento para o processo de aprendizagem de todo e de cada aluno é fundamental para construir trajetórias de avanço”¹. Desenvolver para avançar, Secretaria de Educação Carioca.

Numa proposta contracolonial de ensino, dizemos que desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Afirmamos que nosso caminho é de envolvimentos.

Na busca de práticas de envolvimento, nossas oficinas de Aprendizagens Vivas evocam saberes e fazeres presentes no cotidiano e na memória. Entendemos que a corporeidade é o lugar de registros e agência, onde se articulam e se transmitem mundos. Pensamos em oficinas sinestésicas (sons, aromas, texturas, sabores e saberes), que, a partir da expressão artística, buscam possibilitar um espaço de envolvimento, criatividade e despertamento de memórias.

De onde venho, dizem que arte é a conversa das almas; por isso, cantamos enquanto trabalhamos e dançamos enquanto lutamos. A arte e sua potência de convocação de um corpo coletivo pode, pela liberação dos sentidos, romper espaço e tempo. Romper espaço e tempo na tentativa de conectar seres urbanizados que somos com a natureza que também somos.

Nossa primeira oficina na escola aconteceu em dia de operação policial na comunidade. Fazenda Botafogo é uma região conhecida pelos altos índices de roubos de cargas e tráfico  de drogas e animais silvestres. Romper com tempo e espaço era tudo o que eu queria naquele dia 14 de março. Começamos falando do sol e da selva. No dia anterior, nós tínhamos andado pela parte de trás do quintal da escola para ficar embaixo das árvores e ver de onde vinha a argila. Muitos não sabiam o que era argila, vários não sabiam do que era feita a argila. Ryan explica pra turma:

– Argila é a massinha de terra.

Distribuídas argilas de muitas cores aos alunos, pedi que eles ouvissem a história com a argila nas mãos e que tentassem modelar com os olhos fechados. As mãos precisariam seguir o que a música falava. A oficina foi realizada com turmas do 2° ano do ensino fundamental (crianças com 7 anos de idade), as mesmas turmas que apresentam dificuldades em sentar para ouvir minhas aulas.

Duas semanas antes, eu havia tentado uma atividade que pedia para que fechassem os olhos e quase nenhuma criança da turma conseguira; o incômodo entre elas foi tamanho que pesquisei sobre o tal medo do olho fechado. “Nictofobia, medo irracional do escuro”. No caso das crianças da escola, o medo do escuro não é irracional; desde pequenos são ensinados a estar atentos e vigilantes. Os perigos são reais.

No dia da oficina, no entanto, sentados e com a argila nas mãos, caminhávamos em pensamento pela floresta. Enquanto as almas conversavam, ouvi a seguinte frase:

– Na floresta, eu consigo fechar os olhos.

Depois disso, não lembro de muita coisa.

Foto: Professor Wagner Clayton

 

¹Coordenadoria de Ensino Fundamental Habilidades Curriculares 1º Bimestre 2024 Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura do Rio de Janeiro