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Diário Veronica Pinheiro

ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES

By 4 de junho de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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ESSA SEMANA NÃO RECEBI BILHETES
Veronica Pinheiro

04 de junho de 2024

 

A escola está fechada. Hoje não tem foto. Essa semana não vi as crianças. A escola está fechada. O acesso está mais difícil que o comum. “Usem crachá”. “Esperem antes de sair de casa”. Não saia de casa!

Alternamos entre semanas de encantamentos, euforia, alegrias e medo. Perigo difuso. Perigo concreto. Esta semana não recebi bilhetinhos, nem abraços de braços curtos.

Essa semana me lembrou meus primeiros dias na escola. Na ocasião, a sala de leitura ainda não podia ser usada. Em uma caixa colorida, eu colocava os livros que leria com as turmas em sala de aula. Levava na caixa livros para todas as crianças. Onde eu estivesse com aquela caixa, lá estava a sala de leitura. Era um exercício, meu e das crianças, de transformar o lugar. A mágica sempre estará no encontro. Formada a roda de leitura, a gente podia estar e ser o que bem quisesse.

No primeiro mês de aula, lemos juntos Manu e Mila, de André Alves. Numa turma do 3º ano do Ensino Fundamental, distribuí os livros para crianças de 7 e 8 anos de idade. Alfabetizadas em português, ou não, todas recebem um exemplar do livro. Se tem uma coisa que criança que não lê faz com facilidade é imaginar. Enquanto não somos obrigados a enquadrar o que pensamos, sonhamos e sentimos sem regras gramaticais, confiamos no repertório interno com muita força. O repertório interno é todo um mundo que a criança traz de casa – as brincadeiras, as crenças, os saberes, os sabores. A escola regular, em muitos momentos, ignora  a vida vivida pelas crianças e trabalha para que elas façam o que a Base Comum Curricular espera delas.

Quando entrego livros nas mãos das crianças, digo que, mesmo que elas não entendam as palavras, podem ler cores, desenhos, símbolos e traços. Elas podem também fingir que estão lendo. Podem inclusive fechar os olhos e dormir enquanto eu leio. Antes que alguém julgue absurda a permissão que dou às crianças, trago uma informação: alguns alunos moram em locais onde acontecem bailes e festas que começam às 21h de um dia e terminam às 8h da manhã do outro dia.

Antes de iniciar a leitura digo tudo o que pode. Num ambiente que se especializou em dizer o que não pode, poder é subversão. Lemos em voz alta e com brilho nos olhos Mila e Manu, a história de dois amigos que procuravam a “ALEGRIA”. Foi uma leitura delicada que plantou pensamentos bonitos nas crianças e em mim. Durante a leitura, recebi dos gestores da unidade uma notificação de perigo e que as crianças não poderiam sair das salas. Corredores e banheiros são nossos lugares mais vulneráveis. Lembro de terminarmos a história deitados no chão da sala porque o tiroteio estava muito perto. Lembro de compartilhar um cuidado que eu não sabia que era capaz de compartilhar. Lembro de desejar de todo coração nunca mais ver as crianças deitadas no chão para se proteger de tiros.

Lembro também de passar 2h em absoluto silêncio ao chegar em casa; era um silêncio da boca pra fora porque dentro existia uma barulheira de causar medo. Fazia tempo que eu não sentia medo. Medo por mim, que saí da zona de perigo. Medo pelas crianças que dormiriam lá.

Quatro meses depois desse episódio, recebemos orientações para ficarmos em casa. Apenas um dia na semana a escola abriu, mas as crianças não apareceram. Eu estava lá com tintas, livros e uma fogueira artificial. Comprei uma fogueirinha de LED que simula chamas reais. Uma tentativa de aquecer os corações gelados de medo. Mas as crianças não estavam lá. Sentada à beira da fogueira de faz de conta, ouvi a voz de uma professora que pouco fala comigo. Ela entendeu o convite, conversamos a manhã inteira, ela me contou de suas turmas e trajetória em escolas. Descobrimos, por conta da fogueira, que temos muitos sonhos em comum. De alguma forma, nos aquecemos uma à outra… Saí da favela cantando um samba antigo de seu Nelson Cavaquinho. O mesmo samba que eu cantava quando eu era jovem e voltava tarde da universidade. Eu cantava para espantar o medo de subir sozinha o morro onde eu morava. Cantava para aquecer o coração e espantar o medo, assim meu avô ensinou. No último dia de escola aberta, cantei para sair da escola.

 

“Quando eu piso em folhas secas

Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha estação primeira

Não sei quantas vezes

Subi o morro cantando

Sempre o Sol me queimando

E assim vou me acabando

Quando o tempo avisar

Que eu não posso mais cantar

Sei que vou sentir saudade

Ao lado do meu violão

E da minha mocidade”

 

Enquanto escrevo, recebi a mensagem que podemos retornar. Que sejam bons os dias que virão.

Awrê