DESENHOS DA FALA
Veronica Pinheiro
16 de abril de 2024

“Tem gente me ouvindo?
Quem tá me ouvindo bate uma palma.
Quem tá me ouvindo bate duas palmas.
Quem tá me ouvindo bate três palmas!”
Professores espalhados pelo Brasil lançam mão dessa quadrinha para obter a atenção das crianças para uma atividade. Como professora, muitas vezes me bastava que os alunos me disponibilizassem seus ouvidos, olhos e mãos. Existe uma tal régua que mede a eficiência de um professor e nas escolas a conhecemos pela alcunha de “domínio ou controle de classe”. Quanto mais quieta uma turma, mais eficiente é o regente. O professor em atividade é chamado de professor regente. O comportamento da turma e o desempenho nas avaliações são os critérios máximos para avaliar um professor. Por quê? Porque são pontos observados quantitativamente; são índices facilmente observáveis. Nunca vi secretarias ou programas educacionais medindo o quanto uma turma ou um professor está feliz no bimestre.
A felicidade e o bem-estar não compõem os objetivos gerais ou específicos de um planejamento escolar. Quanto está feliz o professor da turma A? Qual a turma mais feliz da escola? Felicidade é subversão em espaços de formação. A escola é uma estrutura social que representa esquemas de poder e, para isso, as pessoas que ocupam esse espaço assumem papéis sociais. Para garantir sua adaptação e permanência na função, um professor adota a máscara social do regente, se apresentando publicamente muitas vezes como um indivíduo austero. Dá um trabalho danado ser gentil na escola, sabe? Alunos não reconhecem a gentileza como características de um regente. Para eles, adultos são máquinas de dizer “não”; adultos determinam onde, quando e como.
Na prática, “uma turma boa permanece sentada em silêncio ouvindo e escrevendo”. Delicado, né? Porque um professor que tem 40 alunos em turma não consegue trabalhar se a turma não estiver sentada, né? Tudo é feito para ninguém questionar o modelo estabelecido.
Diante de toda potência dos corpos, docentes e discentes, o sistema educacional regular quer dos professores apenas voz e mãos. Dos alunos, os professores querem ouvidos, olhos e mãos.
Atendo semanalmente 14 turmas, passo 1h40 com cada uma delas. Confesso que tenho minhas máscaras sociais. Quando percebo que tenho a atenção de uma turma retiro a máscara da regente, algumas turmas entendem o código e seguimos de boa ao som de músicas, lendo, escrevendo e observando como a natureza está presente na escola. Porém, uma turma já percebeu que componho uma personagem para dar aula. Esses meninos, mais espertos que eu, não me deixam falar, eles não me emprestam seus ouvidos. Diante do desafio, busquei os recursos que tenho para termos qualidade em nossos encontros.
Levei argila para aula e pensei: “Quem sabe o contato com a terra crie um tempo de escuta de qualidade?” O processo de criar com argila está também associado a práticas meditativas de concentração plena. O tato, o contato, a interação com a terra podem promover um senso de comunidade e conexão entre as pessoas do grupo. Mas não deu certo com eles.
Tentei várias coisas. Algumas funcionaram parcialmente.
Lembrei da experiência que vivi com jovens artistas Guarani na preparação do Ciclo Nhe’ërÿ em maio de 2023. Vi quando eles cantaram e dançaram diante de uma tela em branco. Antes de pintar, eles cantaram as memórias da Nhe’ërÿ e honraram a Nhanderu com danças e palavras sagradas. Quando sentiram em seus espíritos que estavam autorizados para representar a Nhe’ërÿ com desenhos, desenharam as palavras cantadas e faladas.
Foi quando resolvi parar de ler histórias para o terceiro ano e começar a desenhar no quadro as histórias do livro. De Elias Yaguakãg, As aventuras do Menino Kawã foram desenhadas no quadro branco e, enquanto a turma ficava empenhada em reproduzir as imagens no caderno meia-pauta, eu aproveitava para contar (às vezes, ler) as histórias. Capítulo por capítulo, as palavras ganharam imagens que eram apagadas do quadro no final da aula. Percebi que as mesmas imagens ganharam lugar nos olhos, cadernos e na memória criada em aula. Um dia, esqueci o quadro desenhado e a professora de inglês da turma não entendeu os desenhos. Então eles contaram para ela sobre Kawã, o menino indígena que era protegido pela Ka’apora’ãga. A professora me procurou na hora do almoço dizendo com sorriso nos olhos: “Eles ouviram e sabem cada detalhe da história. Eles não só te ouvem, eles estão te escutando”.
Já que chamamos nossos compartilhamentos de semeadura, precisamos saber o que a terra pode dar antes de lançar a semente. Eu queria os ouvidos, mas eles são visuais. Não ia dar certo, né?
Eles escutam com os olhos!



Desenhos: construção coletiva da Turma 1401 com a professora Veronica

