A FORÇA E SABEDORIA DO FOGO
Cristine Takuá
30 de agosto de 2024
Foto: Carlos Papá
Da origem do fogo
“Antigamente, quando os Guarani ainda não conheciam o fogo, acabavam comendo cru todas as coisas que os antigos caçavam, frutas que colhiam e precisavam assar. Eles passavam muita dificuldade por não conhecer o fogo.
Então, um dia, um Guarani Mbya viu um abutre voar lá no alto e pensou: “Eu acho que vou ter que conversar com alguém. Como que eu posso fazer para cozinhar as coisas ou até mesmo me esquentar quando faz frio. Como posso resolver? Alguém nesse mundo deve saber. Bom, vou começar pelo abutre”.
O abutre voava lá no alto e o Guarani estava só esperando a oportunidade. Um dia, o abutre estava tomando Sol pousado no chão, então o Guarani Mbya chegou bem devagarinho. Devagarinho, perguntou assim:
“Tomando Solzinho, tomando Sol?”
O abutre falou: “E o que você anda fazendo? Você vai se esquentar também?” Ele respondeu: “Sim, eu vou me esquentar também”.
Aí sentou ali do lado. O abutre começou a ter uma curiosidade e perguntou pra ele:
“E você, o que anda fazendo?”
Aí ele: “Ah, eu estou tentando descobrir como fazer fogo, porque o Sol esquenta. Quando o Sol está quente, todos nós nos aquecemos, mas quando não tem Sol, quando está frio, a gente sofre muito. Então, eu queria descobrir como fazer fogo. E aí eu queria saber: quem será que é o guardião do fogo? Eu quero saber também qual é o animal deste mundo, qual é a ave deste mundo, que é o guardião do fogo?”
Aí o abutre olhou bem assim e falou: “Ah, o guardião do fogo sou eu”.
O Guarani falou: “É mesmo?”
“É, quando não tem o Sol, quando o Sol não vem ao mundo, nós nos aquecemos com fogo”, disse o abutre.
“É mesmo?”, perguntou o Guarani.
“O nosso criador falou que, se eu entregar esse fogo para alguém um dia, eu voaria mais alto que todos, eu conseguiria voar mais alto do que as nuvens”, disse o abutre. “Nunca pensei em dar para alguém o fogo, porque até hoje eu voo baixo. Eu não consigo voar lá em cima.”
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa! Eu estou querendo fazer fogo, eu quero lidar com fogo, quero dominar o fogo, quero poder cozinhar os alimentos”.
Aí disse o abutre: “Ah sim, podemos combinar então. Eu quero voar mais para cima, quero conhecer um pouco mais as nuvens lá em cima. E também, eu gostaria muito de comer as folhas de tabaco, as folhas de tabaco plantadas”.
O Guarani Mbya respondeu: “Ah, então você falou com a pessoa certa, eu vou plantar tabaco. A hora que estiver pronto, você vem comer as folhas. Assim fica combinado”.
Foto: Cris Takuá
Aí no outro dia, o Guarani Mbya pegou as sementes de tabaco e começou a fazer sua roça. Plantou tabaco, e plantou bastante mesmo. Cuidou com o maior carinho e, quando a folha ficou bonita, toda vistosa no ponto do colher, o Guarani Mbya chamou de longe: “Está pronto! Agora pode vir!”
Aí o abutre chegou e falou assim: “Muito obrigado! Então, fazemos nosso acordo. Amanhã eu venho com o pessoal e, no outro dia, depois que a gente for embora, você vai pegar o fogo. Esse é nosso acordo. E aí a gente vai deixar um instrumento também para você. Quando você precisar fazer seu fogo, você vai ter que fazer esse instrumento. É como seu arco: você vai pegar uma vareta firme e fazer o furo na outra madeira. Com esse arco, você vai achar uma maneira mais fácil de rodar, girar a madeira. Por conta da temperatura alta na ponta da madeira, pega o fogo. Assim você vai aprender, vai praticando”.
O Guarani Mbya viu muitos abutres na roça dele, comendo as folhas. Alguns abutres até levavam as folhas de tabaco. Tinha até filhotes, muitos abutres mesmo. Eles comeram todas as folhas e, à tarde, todos começaram a voar e ir embora.
Ele olhou para a roça e nada. No outro dia, voltou lá e estava tudo seco. Ele viu, na ponta da roça, uma madeira pegando fogo. Ele ficou tão feliz que ficou lá, cuidando do fogo. Fez uma oca em cima e ficou cuidando do fogo, durante muito tempo, até que aquela madeira chegou ao fim. Ele não sabia mais o que fazer e lembrou do instrumento que o abutre tinha deixado. Ele procurou por ali e, de repente, encontrou: um arco, uma madeira e uma vareta, ali, uma varetinha, e uma outra madeira com furo. Ele começou a fazer testes e se dedicou a praticar por bastante tempo. Um dia ele já estava quase desistindo, mas tentou de novo, e percebeu que estava saindo fumaça no lugar do furo. Ele começou a soprar, colocou as varetas, e elas começaram a pegar fogo. Ele ficou tão feliz!
Ele entendeu que o abutre tinha entregado o fogo e o segredo do fogo. O abutre não podia mais ser o guardião do fogo.
Hoje, o abutre vive em cima das nuvens. É o pássaro que voa mais alto, mas ele não é mais o dominante do fogo. O Guarani Mbya que ficou como guardião do fogo.”
(Carlos Papa Mirim Poty, Guarani Mbya)
Foto: Cris Takuá
Assim como os Guarani, muitos povos indígenas têm suas narrativas ancestrais sobre a origem do fogo e sua significância para a cosmologia de suas tradições. Ao longo da história, modos de fazer roça e práticas de manejo integrado ao fogo foram ferramentas de uso muito importante para conservação da biodiversidade, tendo aspectos ecológicos, sociais e culturais de muitos povos. Porém, de forma inadequada empregaram essa técnica para desmatamentos criminosos, causando o desequilíbrio das florestas e de nossas vidas. Essas violências relacionados ao mau uso do fogo, ou o seu uso abusivo e descuidado, estão totalmente ligadas a políticas da monoculturas de exportação, ao café, ao gado, ao agronegócio, à mineração, à urbanização e ao capitalismo de um modo geral, que não respeitam as vidas vegetais, animais e minerais, nem mesmo as vidas humanas.
O fogo também é um elemento muito antigo conectado à espiritualidade. Rituais e cerimônias de cura têm no fogo a base da transformação, que pode ser para proteger uma pessoa que faleceu e garantir a seu espírito um retorno tranquilo. Também é tradicionalmente usado para espantar os maus espíritos e, devido a isso, o fogo costuma acompanhar as noites, aceso logo após o pôr do sol, se mantendo até o amanhecer do dia. Em muitas culturas, quando alguém morre, costuma-se queimar a casa onde a pessoa morava e todos os seus pertences, para que o espírito se desprenda da terra e não deixe lembranças.
Fotos: Cris Takuá
Muitos são os saberes e conhecimentos relacionados ao fogo. Ele é sagrado e existe há milhares e milhares de tempos. Um grande ensinamento que um ancião de mais de cem anos fala é que a tecnologia indígena permite a regeneração. O fogo não é usado de qualquer maneira, ele é rezado, primeiro é pedido licença e permissão e seu uso é controlado.
Quando empregado na agricultura comunitária, ele avança mais sobre cipós e pequenas plantas, previstas para serem queimadas. Em seguida, as mulheres plantam primeiro as plantas de ciclo rápido, como milho, feijão, melancias. Depois vem a capoeira e, com ela, os animais e pequenos seres. Os animais trazem sementes, que vão aos poucos germinando. A segunda queima, a coivara, é uma seleção mais fina de pontos férteis. A partir daí, é plantada a batata-doce, que aproveita particularmente o potássio das cinzas. Muitos povos chegam a preparar comida nos locais das roças para aproveitar as cinzas como nutriente. As plantas introduzidas no primeiro plantio são as mais tolerantes ao fogo, vindo depois as frutíferas, destinadas à caça. Hoje, muitos têm empregado técnicas de agrofloresta, até para recuperar solos demasiadamente degradados pela ação humana.
De um modo geral, o que ensina a agricultura indígena é o que a arrogância colonial se negou a aprender com ela. A arrogância acabou destruindo a vegetação, o que endurece o terreno, diminui sua permeabilidade, aumentando o escoamento de nutrientes e acentuando a erosão, impedindo a acumulação de húmus e perdendo a água.
Saber caminhar de forma respeitosa e suave na Terra e saber como se relacionar com os elementos sagrados – água, fogo, terra e ar – é fundamental para que possamos entender os limites dessa nossa humanidade.
Esses são ensinamentos vivos em muitas culturas. E a prática desses saberes e fazeres é resistência num mundo onde o dinheiro pretende comprar até almas.
É necessário romper com as barreiras da arrogância e enxergar que existem muitos mundos possíveis. A semeadura mais importante hoje é a mental!
Ampliar a consciência para que o respeito para com todas as formas de vida possa existir novamente!
O fogo é sagrado!

Fotos: Carlos Papá

