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Diário Veronica Pinheiro

APAGA QUE TÁ FEIO!

By 19 de março de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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APAGA QUE TÁ FEIO!
Veronica Pinheiro

19 de março de 2024

 


Sala de leitura, livro 3

Leia os trechos a seguir em voz alta:

“E não era muito inteligente também. Ele tinha construído a casa de palha. Dá para acreditar? Quero dizer, quem tem a cabeça no lugar não constrói uma casa de palha.”

“Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

“Esse era um pouco mais esperto, mas não muito. Tinha construído a casa com lenha.”

“Então fui até a casa do próximo vizinho. Esse sujeito era irmão do Primeiro e do Segundo Porquinho. Devia ser o crânio da família. A casa dele era de tijolos.”¹

Será que a história dos três porquinhos ocorreu daquele jeito mesmo? E se o lobo resolvesse contar a coisa toda do seu ponto de vista?

O lobo contou e ficou pior. Publicado pela Companhia das Letrinhas, o livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, é um livro infantil que compõe o acervo das salas de leitura das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Só na escola em que trabalho são 32 exemplares. Uma turma de Ensino Fundamental 1 tem em média 32 crianças, portanto se trata de uma obra recomendada para ser lida em classe. Além disso, em 2013 e 2014, o texto foi colocado nos cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação carioca, suprimindo alguns trechos que classificam como ignorantes os sujeitos que constroem casas de palha ou lenha. Porém, nas duas edições do material pedagógico destinadas às crianças do 4º ano do EF aparece o trecho “Aquela maldita casa de palha desmoronou inteirinha.”

O livro A verdadeira história dos três porquinhos deveria ser um texto para inocentar o Lobo Mau. A intenção descrita no livro é trazer ao conhecimento do leitor que o lobo foi vítima de armação. No formato de um diário, o lobo fala sua versão da estória; e fico triste que ninguém tenha sinalizado: apaga esse trecho, tá feio. Pelo contrário, o desabafo do lobo foi escrito, revisado, publicado e distribuído para crianças do ensino fundamental.

Gostaria de trazer novamente uma informação que aparece no diário da primeira semana: a Pedreira, favela onde está localizada a escola em que dou aula, possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Ao caminhar pela estrada principal do bairro vemos muitas casas de lenha.

Foto da Estrada de Botafogo. Acervo Pessoal Lenon Suhett, Pesquisa Geografia e Comunidade Escolar
(Lenon e Veronica foram diretores de escola juntos de 2019 a 2021)

A verdadeira história dos três porquinhos fere diretamente as crianças, a comunidade e as populações tradicionais que, manifestando abundância, conhecimentos ancestrais e relação com a terra, constroem suas casas com palha, lenha e terra.

Carter G. Woodson fala que o sistema educacional eurocentrado está a serviço da deseducação do negro estadunidense e convoca a população negra a desenvolver e executar um programa próprio. Ler o diário de um lobo me fez lembrar do professor Woodson e pensar que precisamos de práticas educacionais decoloniais efetivas e não instagramáveis.

Foto de casa na Aldeia Guarani Rio Silveira. Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

Ao longo do trimestre, vamos construir nossa casinha com bambu, palha e argila. As crianças precisam saber que o que o lobo chama de “pouco inteligente” chamamos de conhecimento tradicional, bioconstrução, e que é preciso saber muita coisa para se levantar uma casa sem comprar nada. Povos indígenas e quilombolas conhecem muito sobre solo, plantas, sabem onde o sol nasce e onde fica a lua em relação à casa construída; e tudo isso é sobre relacionamento. Recontaremos histórias, ativaremos fazeres, saberes e memórias.

Que o sol nos ajude nessa caminhada.

O lobo já deixou escrito o que ele pensa. Não esperemos nada dele.

Casa no quilombo São José. O quilombo São José existe há cerca de 150 anos e está localizado na cidade de Valença (RJ).
É uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas que vieram da Angola e do Congo, atualmente cerca de 200 quilombolas
moram no local e suas casas são feitas de adobe, pau-a-pique e telhado de palha.
Foto: Acervo pessoal de Veronica Pinheiro

 

¹SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.