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Diário Veronica Pinheiro

CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI?

By 23 de abril de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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CADÊ O RIO QUE ESTAVA AQUI?
Veronica Pinheiro

23 de abril de 2024

 

Turma do 1º ano Roda de Leituras: A natureza que vive aqui
Foto: Professor Wagner Clayton

Os livros didáticos de história do Brasil sempre apresentaram a vida dos povos indígenas e quilombolas de forma preconceituosa. As lacunas estabelecidas, intencionalmente, nos ensino básico e superior formou, deformou e conformou gerações. Ao apagamento sistemático de produção de saberes produzido por grupos contra-hegemônicos¹, chamamos de EPISTEMICÍDIO. Quando o conhecimento científico se torna a única maneira de ler e entender a vida, fica estabelecido uma estrutura monocultural que tenta desqualificar outras formas de conhecimento.

Ouvi, mês passado, num evento de uma universidade federal, que ”somos vira-latas”. A fala veio de uma doutoranda bem intencionada que tentava explicar que a mestiçagem estrutura toda a forma de ser e existir do brasileiro. Vira-latas são SRD, cães sem raça definida, sem origem delimitada com misturas de duas ou mais raças. Com todo amor que tenho aos vira-latas, o pensamento que compara o povo brasileiro a cães sem origem delimitada é perverso do começo ao fim.

Começo a contar histórias indígenas e afro-pindorâmicas da seguinte forma:

Há quinhentos anos, não existia um povo chamado de brasileiro. Quem morava aqui (Rio de Janeiro) eram outros povos. Eram nações que falavam línguas diferentes, tinham seu próprio jeito de ser e seu próprio nome. E sempre perguntam: Quem vivia aqui?

A armadilha colonial é tão bem feita que levamos às crianças apenas as informações contidas nos livros. Fazemos isso, mesmo sabendo que os colonizadores, que tentaram identificar o nome de cada povo, criaram muitas confusões por desconhecer a língua falada ou por simplesmente preferir genericamente designar nações.

A escola onde estamos tecendo memórias está localizada próxima aos rios Acari (peixes), Irajá (cuia de mel) e Pavuna (lugar atoladiço). Os rios dão nome aos bairros. E às suas margens, além de mata ciliar, encontramos fios de memória para nossas tessituras.

No ciclo presencial AYVU PARÁ, que aconteceu no dia 31 de maio de 2023 no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, Carlos Papá mediou aulas com saberes profundos sobre a Nhe’ërÿ (o lugar onde os espíritos se banham, assim os Guarani chamam a Mata Atlântica). Durante os dias de encontro, a caminho do restaurante onde almoçamos, Papá me fez a seguinte pergunta: “O que você está ouvindo?”

Era hora de almoço, um dia de semana na Barra Funda, São Paulo capital. Eu ouvia crianças indo ou voltando da escola, carros e ônibus na avenida Matarazzo, gente passando. Papá vendo que eu não entendi a pergunta, parou, olhou para a tampa de um bueiro e disse: “Você não ouve o rio? Tem um rio preso aqui dentro.”

Depois da escuta ser gentilmente conduzida, ouvi o rio. Sua voz era diferente dos rios que eu tinha acabado de ouvir em viagam no Recôncavo Baiano. Uma voz densa. Era tanta força e vida que eu fiquei ali por alguns minutos.

Os rios sabem de muitas coisas. Certamente eles sabem da origem de muitas coisas. Nada nesse território tem origem desconhecida. A questão é: quem estamos ouvindo? Os livros didáticos trazem informações sobre pessoas indígenas e quilombolas, porém raramente indígenas e quilombolas participam da organização dos conteúdos. Mais raro ainda é encontrar parcerias que não tratem pessoas indígenas e quilombolas como objetos informantes ou interlocutores-informantes.

Sonho com o dia que poderei, como professora, colocar nas referências dos meus textos e planejamento de aula: “palavras do Rio Acari” ou “canto do beija-flor que pousou na janela da sala”.

A lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Na prática, os livros são a referência, e as aulas são encontros para repasses de números, dados, datas e informações sobre algo desconhecido. A história e a cultura idígena e afro-diaspórica se estabelecem em presença, não em referência. O mito ou o itã são memórias vivas de povos vivos. A corporeidade é o lugar de articulações e agências de vida. O território vibra a força da vida; sendo ao mesmo tempo corpo, chão, rio, ar e todos os seres que existem naquele lugar. Por isso, insistimos em falar de escolas vivas. Escolas de presença, com memórias vivas.

Para isso, precisamos refazer percursos. Como professora, devo estar disponível aos processos de desaprendizagens. De deseducação. Preciso criar outra relação com o tempo/bimestre/cronograma/agenda. O que fala o rio Acari me importa mais que o que contam os livros. Quando as crianças me perguntam: “Qual povo vivia aqui?”

Eu respondo: “Cadê o rio que estava aqui? Algum rio passa por aqui? Porque os rios certamente sabem mais sobre esse lugar do que os livros que li.”

A pergunta rendeu: Agora temos um projeto junto a coordenadora pedagógica da unidade para a escola e comunidade escolar. Cadê o rio que estava aqui? O que os rios dizem sobre nós?

Se você ouve rios e sabe de coisas líquidas, mais ou menos torrenciais, precisamos de você para construir percursos. Para caminhar pelas águas, temos uma canoa chamada Encantada. E nela sempre cabe mais um. Aceita o convite?

 

Apresentação da sala de Leitura e o 4º ano para escola: A culpa não é da chuva
Fotos: Professor Wagner Clayton

 

¹ Entende-se por movimentos contra-hegemônicos as práticas de resistência aos discurso de gestão dominantes que buscam contestar e escapar à disciplina da ordem do sistema capitalista. SULLIVAN, S; SPICER, A; BÖHM, S. Becoming global (un)civil society: Counter-Hegemonic Struggle and the Indymedia Network. Globalizations, 8(5), 703–717. https://doi.org/10.1080/14747731.2011.617571