O SOL SONHAVA AMANHECER
Veronica Pinheiro
30 de abril de 2024
“Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou o Sol
Há milhares e milhares no meio do escuro
Criou a água, o vento, a vida no planeta
Por isso você não pode ter medo do escuro.
O escuro é a mãe de todo o universo, inclusive de Deus.
O escuro não escolhe ninguém.”
Poética Guarani narrada por Carlos Papá¹

Foto: Veronica Pinheiro
O diálogo a seguir abre caminhos para a segunda Oficina Aprendizagens, que o Selvagem pensou para a Casa das Crianças:
- Preciso de uma sala escura.
- Não temos uma sala escura. Você não pode usar a Sala de Leitura com a luz apagada?
- Posso. Mas ela não é escura o suficiente. E se alguém, sem querer, acender as luzes da sala, perdemos esta etapa do trabalho.
- Crianças têm medo do escuro.
- Crianças têm medo da relação que criaram para elas com o escuro. Vai dar certo, elas estarão carregando o Sol dentro do peito. Vamos construir uma boa relação com a escuridão.
- Tem a antiga salinha do médico. Não sei se é escura o suficiente, mas eu te levo lá.
A salinha do médico ganhou camadas de tecido preto, gentilmente colocadas pelo professor Wagner, tornando-se o nosso laboratório de imagens e sons. A oficina era sobre o Sol e a relação de vida que ele estabelece com a Terra. A palavra “relação” aparecerá escrita ou subentendida em todos os textos do diário, e não será por descuido. A oficina, mais especificamente, era de cianotipia, processo fotográfico artesanal, criado no século XIX, que utiliza sais de ferro para a produção da cópia fotográfica em tons de azul. A sala cedida, inicialmente, era para a preparação dos químicos, para sensibilizar e secar os papéis na primeira etapa. E, para a impressão das imagens, a luz do Sol. A sala está se tornando um lugar para pensar sobre as coisas que sentimos quando estamos longe da luz. Para as crianças, luz significa bem, coisa boa; e escuridão significa mal, coisa ruim. Entre a luz e a escuridão, o pensamento euro-cristão-monoteísta criou distâncias fixas preenchidas por medos.
A escolha das oficinas é um grande apanhado de inquietações. Buscamos atividades em que a natureza seja protagonista. E nos concentramos para que o protagonismo não se confunda com utilidade ou recurso. Cuidamos para que ninguém pense que usamos a luz do sol para revelar fotografias. Não usamos a natureza, somos seres compartilhantes. Diante do sol os corpos dançam – o corpo da água, dos humanos, das plantas, dos sais. De que nos adiantam atividades onde há uma ebulição sinestésica, que, no final, só gera prazer aos humanos e ofende às árvores, às águas, à terra?

Foto: Wagner Clayton
Antes da oficina de fotografia artesanal, conversamos sobre os textos que a luz do Sol escreve na terra. Falamos sobre escuridão (de onde saímos todos), sobre fotossíntese, foto e sínteses. Três textos foram compartilhados com os alunos da escola: A vida do sol na Terra¹, Iori descobre o Sol e Taynôh, Ho Shamêh Tahe. Um vídeo sobre o Sol foi exibido. Pintamos o Sol em tecidos de algodão; tecemos raios solares para pulseiras; fizemos registros fotográficos; sensibilizamos papéis no laboratório escuro. Com qual objetivo? Despertar memórias solares.
A escola constrói esquecimentos. Por anos, acordei antes do Sol, chegava na escola bem cedinho e voltava para casa quando o Sol já estava se pondo. Trabalhava na escola e ensinava sobre as coisas da vida. Naquela época, estive tão distante do Sol que meu corpo se esqueceu de muita coisa. Desaprendi a suar e a produzir vitamina D. Meu corpo tinha falta de Sol.
Se a escola constrói esquecimentos, contamos histórias para acordar sentidos e memórias.
“Se tiver dificuldade para achar o caminho, pergunte a meu filho Kuaray, o pequeno Sol, que ele saberá guiar vocês.”¹
Em diálogo com o mito Guarani, conhecemos um pouco sobre Kuaray, filho de Nhanderu’i. Conversamos sobre caminhada e escuta.
A mãe do Sol em algum momento parou de ouvir o Sol porque ficou furiosa quando foi picada no dedo por uma enorme abelha mamangava.

Foto: Wagner Clayton
Os pequenos sóis que estavam diante de mim quiseram falar. Eu parei para ouvi-los. Eram narrativas silenciadas. Compreendi ali um pouco da relação deles comigo e com a escola. Algumas crianças sem mãe, muitas sem pai, tendo que ser um Sol que brilha sozinho na Terra. Crianças de 5 a 7 anos que conversam sobre conselho tutelar, abandonos e desejos de ser Sol.
Na leitura de Iori descobre o sol, de Oswaldo Faustino, na verdade é o Sol que descobre Iori. Em Iorubá, Iori quer dizer “cabeça que voa alto”. Exercitamos imaginar quem era o Sol e o que ele fazia na Terra. No final dessa atividade, recebi vários sóis pintados e nomeados com nomes femininos. Sorri e falei alto: “Vocês aprenderam isso com os Macuxi?”. “Wei” significa “Sol”. Sony Ferseck me disse que, para a cultura do povo Macuxi, o Sol é uma entidade feminina². As crianças entenderam o exercício de pensar em outras formas de ser e estar no mundo. Pensaram no Sol como quem alimenta as plantas todas as manhãs e disseram: “O Sol é mãe”. Eu sorri. Nunca tinha pensado nessa possibilidade. Confluímos. Meus pequenos companheiros de jornada iluminaram mais uma vez meu caminho na Pedreira³.
Deste livro, surge a frase mais doce que li na semana: “O sol sonhava amanhecer”.
Sonhei com o Sol e partimos para a última leitura e oficina.
Taynôh, Ho Shamên Tahe, o menino que tinha cem anos, é um livro polilíngue (Puri, Guarani Mbya, português e espanhol) de Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri). A leitura foi rápida e generosa. Fomos guiados por uma água doce e profunda, conversamos sobre não plantar esquecimentos.
Durante esse encontro, sistematizamos todas as etapas da cianotipia. Depois de ter explicado tudo o que iria acontecer e os resultados que teríamos, pulei etapas e descumpri os combinados. A turma acompanhou a oficina seguindo a professora na sala escura, no Sol. Mas as impressões não saíram no papel. Letícia, de 10 anos, fez a seguinte observação: “Para que as coisas aconteçam na terra, todos os elementos precisam estar presentes. Você sensibilizou os papéis com água. Não usou os sais. ‘Tudo acontece em presença’, não é?”. “É. Tudo precisa estar presente, Letícia.”
Vitor, de 10 anos, conclui: “Então bora voltar pro escuro e começar tudo de novo”;
Começamos de novo. E quando colocamos no Sol os papéis, sem pular etapas e sem ausências, o Sol escreveu em azul nos papéis. Ali estavam nossas fotografias azuladas, retratando as folhas que colhemos no quintal.

Fotos: Wagner Clayton
¹https://selvagemciclo.org.br/wp-content/uploads/2023/11/CADERNO79_PAPA_KANGUA.pdf
²Ferseck, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem Sol. Boa Vista, RR: Wei Editora, 2022.
³Pedreira é o nome do complexo de favelas onde a escola está localizada.

