SUMAUMANOS
Veronica Pinheiro
14 de maio de 2024
“Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”,
“Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”.

Às 7h30 do dia 07 de maio de 2024, a diretora, como todos os dias, abriu o portão da escola. No lugar de “bom dia”, ouvimos: “Não dormi de tanta alegria! Eu queria que amanhecesse logo pra vir pra escola.”
Pronunciadas as sentenças, ouvimos vozes sequenciadas como num jogral: “Eu também”. “Eu também”. “Eu também”.
Não reforcei o coro, mas eu também.
Era o dia da primeira imersão do Grupo Aprendizagens. Nosso destino: Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesse movimento de despertamento de memórias, provocamos encontros. Alguns são entre espécies, outros não. Para nossa imersão pensamos no encontro das crianças com as árvores. Tínhamos um roteiro alinhavado: receber as crianças na escola; café da manhã; embarque no ônibus; chegada no Jardim Botânico; visita ao museu e à exposição Mbaé Kaá; passeio no jardim; piquenique; meditação e jogos teatrais; retorno à escola; e almoço. Uma linha longa e sensível prespontava de verde nossas expectativas.
Se “só existe o experimentar e o resto não nos diz respeito”¹, o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza, que também somos? Muito provavelmente, chegaremos ao último diário do ano, em dezembro, sem a resposta, mas essa pergunta nos move. Repetidas vezes falamos em semeadura; em palavras germinantes. No cenário ideal, quem planta uma roça sabe o que vai colher e sabe o tempo de colheita do que foi plantado. E quem planta sonhos? Encontros? Quem planta água, árvores e florestas?
Levar as crianças ao Jardim Botânico para que elas encontrassem as árvores não compõe uma estratégia pedagógica. É muito mais simples: toda criança tem o direito de saber que é natureza e de ter acesso às manifestações do mundo natural.
“Tia, isso não é tiro. É fogos. Fica tranquila.” “Tia, esse barulho é do helicóptero da reportagem, o helicóptero da polícia tem outro barulho.” Na favela da Pedreira, muitas crianças de menos de 10 anos sabem reconhecer os sons do horror e da guerra. Porém, não conhecem os sons resultantes do encontro do vento com a copa das árvores. No dia 07 de maio de 2024, dia do passeio, a favela amanheceu tranquila e o Sol apareceu cedinho e bem quente, apesar de estarmos no outono. A última terça tinha gosto de docinho de festa.
Da escola, éramos um total de 42 pessoas². Do Grupo Aprendizagens, 6³. 1 ônibus rosa-choque e 1 motorista super gentil. A cor do ônibus é estratégica, precisamos entrar e sair da favela em segurança. O tal ônibus rosa se tornou uma personagem querida entre crianças e adultos, ele já ganhou nome e sua visita está sendo aguardada por outras turmas da escola.

A visita ao jardim começou e terminou diante da Sumaúma (Ceiba pentandra). No começo, “Sumaúma: Copa, Casa, Cosmos”, obra de Estevão Ciavatta com narração de Regina Casé, nos imergiu virtualmente na Sumaúma. Fomos recebidos pela equipe do educativo do Museu; Daiani Araújo e Thalyta Sousa receberam as crianças com muita delicadeza e conduziram todo o grupo até a obra Sumaúma. Na sala de projeção, todos, sem exceção, ouviram com o coração as palavras da árvore. Pela primeira vez, muitos dos presentes se deram conta que uma árvore tem muito a dizer sobre si e sobre a vida. Alguns quase não piscavam, outros ouviam de olhos fechados. Todos sorriam com lábios e olhos.

“Tia, faz o mapa pra chegar da escola até aqui. Quero trazer minha família pra ouvir a árvore.”
“Farei um mapa do metrô da Pavuna até aqui. Será muito fácil chegar.”
Subimos as escadas de madeira em pequenos grupos de 7 pessoas e no segundo andar, dentro da exposição Mbaé Kaá aprofundamos algumas conversas sobre plantas e a relação dos povos indígenas com elas, ao redor da instalação Jardim Viva Viva. Arte Guarani, natureza, ciência, Barbosa Rodrigues e as janelas do prédio. Após a conversa sobre a exposição, as crianças correram para janela. Ali me toquei que as janelas das salas de aula da escola não têm vista. O gesto coletivo de olhar para fora trouxe uma inquietação ao grupo. Muitos encontros estavam por acontecer. Abraços entre crianças e educadores do museu encerraram a primeira parte do passeio.

Dentro do Jardim, as crianças olhavam pra todas as direções possíveis. Enxergavam com olhos, ouvidos, pés, pele e coração. Pausa para admirar a água fresca descendo das pedras. Pausa para sentir o frescor das águas. Por um minuto ou mais não ouvi vozes; corações e bocas se calaram para o olho ver direito. Findo o silêncio que saudava as águas, aos poucos a euforia tomou novamente o grupo. “Não vou mais lavar essa mão aqui. Toquei na água da cachoeira.” Não falei nada. O menino acreditava que tinha tocado as águas, mal sabia que as águas tinham tocado nele. Ele agora carrega água fresca dentro, lavar ou não a mão é detalhe.
“Tia, o bambu falou!” Antes que eu tecesse algum comentário…
“Por que não tem panda lá em cima?”
Antes que eu falasse qualquer coisa… um peixe gigante, o tambaqui que vive no Lago Frei Leandro, se tornou mais interessante que a resposta. Caminhamos por alguns minutos, atravessamos a pequena ponte e o pequeno portal para o parquinho das crianças. Lá, tivemos uma pausa pro lanche e para meditação. Cantamos pra Terra. De olhos fechados fomos árvore. Raízes. Tronco. Galhos. Folhas. Nosso passeio se aproximava do fim, era hora de retornar ao ônibus. Pegamos um caminho diferente dentro do jardim, não poderíamos ir embora sem encontrar a Sumaúma plantada no Jardim.
Com raízes muito profundas que trazem água para a superfície mesmo na época seca, a Sumaúma é considerada a mãe da floresta e pode chegar a 70 metros, o que equivale a um edifício de 24 andares. De onde eu venho, na sumaúma vive Iroko, (do iorubá Íròkò) que é guardião da ancestralidade e dos antepassados, seio da natureza e morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Muitos povos indígenas afirmam que as grandes sapopemas da sumaúma representam um portal para outro mundo. Uma árvore sagrada para diversos povos da floresta, uma grande mãe, que protege todos. Os Huni Kuï dizem “Yuxin dacixunuan punyan daci we tsaua”, “todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Num espaço pluriversal de diálogos, a sumaúma é tudo isso e mais um pouco.
Li um documento da EMBRAPA sobre a Sumaúma e pensei que a equipe que escreveu o texto para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ter visitado o Jardim Botânico do Rio junto com as crianças, pois os técnicos do governo só conseguiram apresentar ao público os múltiplos usos e alternativas econômicas sobre a sumaúma. As crianças não. Assim como os babás e pajés, as crianças se conectaram com a árvore. Sonhos e seiva se misturaram. À medida que nossa roda se formava ao redor das sapopemas da sumaúma, memórias verdes eram despertadas. Em tempo de sonho, meus pequenos companheiros sonharam ser árvore e viver num jardim. Sonho é seiva, líquido que circula mantendo o tempo circular. Num tempo de seiva, Angélica de 10 anos chegou à seguinte conclusão: “Encontramos a árvore, entramos dentro dela agora somos SUMAUMANOS”.

Voltando à pergunta que nos movimenta: o que acontece quando, de forma sensível, aproximamos os seres urbanos que somos da natureza que também somos? Segundo a menina Angélica, podemos virar um pouco árvore.
¹in Mbaé Kaá o que tem na mata: A Botânica Nomenclatura Indígena, de João Barbosa Rodrigues. Dantes Editora, 2018.
² 37 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, 3 professores, coordenadora pedagógica e diretora adjunta
³ Luany da mediação de visita ao Jardim; Paula Novaes da mediação de atividade de respiração e jogos teatrais; Tania Grillo da mediação durante a exposição Mbaé Kaá, e 3 integrantes da equipe de voluntários, Bia Jabor, Eliane Brígida, Evellyn.
Fotografia: Éricka Hoch;
Coordenação e medicação nas atividades de Veronica Pinheiro.

