SERÃO PERMITIDAS APROPRIAÇÕES E RELEITURAS
Veronica Pinheiro
21 de maio de 2024
“Não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito num novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com este que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que o meu sapato acabou, eu compro um novo.”
Ailton Krenak

O ano: 2024. As duas reflexões chegaram a mim no mesmo dia: a primeira, um vídeo, do qual transcrevi um trecho da entrevista de Ailton Krenak; a segunda, um edital da Mostra Municipal de Multilinguagens, de onde copiei a frase que intitula este texto.
Esta semana o diário seria sobre a oficina “Cores e terra – pigmentos e pintura”. Porém, no último dia da semana, ainda em expediente, recebi o edital da 4ª Mostra Municipal de Multilinguagens. Minha tarefa era entender como poderíamos inscrever a escola e os trabalhos que estamos desenvolvendo na mostra. Não sei vocês, mas eu leio editais e me atento às miudezas e aos detalhes. Eram tantas orientações pedagógicas somadas a um punhado de siglas e objetivos gerais e específicos. Assumo aqui que sou cismada com leis, diretrizes e pedagogias. As práticas, o não dito, o estabelecido, as escolhas e o fôlego das propostas me interessam mais. A princípio, li para entender em qual linguagem artístico-pedagógica poderíamos inscrever a escola (dança, teatro, música e/ou artes visuais). Depois não consegui parar de pensar sobre o que li.
O tema da mostra – Brasil e seus brasis, a influência dos povos originários na formação da nossa identidade cultural brasileira, à luz da Lei 11.645¹ – tem uma série de agendas a cumprir. Era tanta demanda bonita (competências para o século XXI²; conjugar os 4Cs³; trabalhar temas transversais⁴; incluir a questão sócio ambiental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS⁵; ampliar visão de sociedade e de mundo; focar na Agenda 2030 com a Coordenadoria de Diversidade⁶; não esquecer da Base Comum Curricular – BNCC⁷; implementar a Lei 11.645) que até fiquei tonta.
Este texto poderia ter parado no título. Entretanto, convido a todos a pensar em como a gente vai resolver este mundo que estamos estragando. “Serão permitidas ‘apropriações’ e ou releituras’”. Esta frase me saltou aos olhos, automaticamente disse: “não entendi”. Ou entendi tudo. A sentença (frase ou oração; intencionalmente escolho a palavra SENTENÇA) escrita na página 15 do edital diz tanto sobre as relações étnico-raciais propostas pelas instituições e suas escolhas pedagógicas. Porém as instituições são compostas e representadas por pessoas. E como pessoas podemos juntos pensar em possibilidades para reescrever perspectivas e realidades.
Não há neutralidade num texto. Aprendi estudando linguística que em cada signo “dorme um monstro”. Se me atento ao não dito, como ignorar o dito? O escrito?
“O corpo de um negro ou de um índigena está impregnado de cultura e memória, traz as marcas de dor e sofrimento que a colonização impingiu. Essas peles não são fantasias. Portanto, apropriação cultural não é homenagem, é violência simbólica exercida de forma sutil ou explícita. Ninguém tem o direito de usar um cocar e pintar a cara enquanto apoia o genocídio indígena. Um branco não pode cantar samba e continuar destilando racismo.”⁸
Certamente alguém vai tentar explicar e apresentar contextos para justificar a sentença que tanto me doeu os olhos. Pode até explicar, mas quem valoriza documentos e papéis não sou eu. Meu povo guarda memórias e saberes em cantos, em práticas e em rezos. Não sou eu quem exige que tratados e acordos sejam validados por escrito e protocolados. São as instituições. São as instituições que dizem “vale o que está escrito”. E estava escrito:
“Serão permitidas ‘apropriações’”
E se está escrito pode ser reescrito. Que possamos, a partir de 2024, reescrever coletivamente os caminhos e as possibilidades de coexistência. Toda cultura é resultado de anos de interações sociais e naturais; por isso, a afirmação da identidade é um movimento orgânico. É importante ouvir mais; por exemplo, ouvir como pessoas indígenas gostariam de ser apresentadas e representadas. Muita gente não sabe que um grafismos não é apensas uma pintura; tantas outras, desconhecem que um canto pode trazer memórias antigas e palavras de cura. Que em 2024, possamos entender que a melhor forma de honrar uma tradição é fortalecendo os territórios e respeitando todas as manifestações de vida presentes neles.
²https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000234311
³O conceito dos 4C’s foi apresentado pela associação National Education Association (NEA), em complemento às atividades do “21st Century Skills”, movimento educacional do século 21 que visa capacitar os educadores para avançarem em sua própria prática. Os 4Cs são: pensamento crítico; colaboração; comunicação; criatividade.
⁴ Os temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais são: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Temas Locais. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf
⁵ São 17 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel
⁷ http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
⁸Apropriação cultural / Rodney William. — São Paulo : Pólen, 2019.

