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Diário Veronica Pinheiro

LER A TERRA

By 28 de maio de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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LER A TERRA
Veronica Pinheiro

28 de maio de 2024

 

Me lembro da conversa que tivemos com o barro no encontro Cosmovisões da floresta, no dia 13 de maio de 2023, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). O encontro entrelaçou os projetos Ore ypy rã – Tempo de Origem e o Selvagem em um dia de exposição e atividades com cantos, danças, conversas. Diante de um vaso de cerâmica marajoara, Francy Baniwa começou a falar sobre como as mulheres Baniwa conversam com a argila, que é um ser muito antigo e sagrado. De onde eu venho, o barro também é sagrado. Lembro do barro vermelho que cobria toda a comunidade e de como tocávamos com a mão no chão e no coração antes de dançar ou jogar capoeira. Lá em casa, o barro era nossa avó; berço originário e colo derradeiro. O barro só era colhido mediante as necessidades. Levei isso para as oficinas com argila.

Andando pelo bairro de Costa Barros, onde a escola está localizada, entre barrancos e barracos, a quebrada do terreno ocasionada pela chuva, deslizamento ou pela ação do homem revela as cores guardadas na terra. Texturas e tonalidades de marrom e matizes avermelhadas colorem e revelam propriedades físicas, químicas e mineralógicas do solo. Durante o planejamento das oficinas de plantio das espécies frutíferas da Nhe’ëry com Gerrie Schrik, me foi feita a seguinte pergunta: Como é o solo da escola? Não tendo as respostas técnicas, pude falar com detalhes sobre o que vi. E via as cores da terra nas escavações e barrancos. Olhar pra terra é uma prática que tento passar para as crianças.

“Ninguém fazia análises de solo, conhecíamos o solo só pelo olhar. Só de olhar para a terra já sabíamos o que plantar. Conhecíamos a vegetação. Numa terra que dá muita leguminosa nativa, plantava-se feijão; numa terra que dá muita gramínea nativa, plantava-se milho e arroz. É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer.” Nego Bispo

A terra diz. Passamos na escola uma semana olhando a terra. As crianças e eu. Faixas de terra ao redor da escola que não foram cobertas pelo cimento foram os textos da semana. Em sala, eu e as crianças lemos e conversamos sobre a “Carta da Terra”. Curioso, as crianças nem sabem mais o que é uma carta. Elas escrevem recadinhos em papéis pra mim, mas chamam o bilhete de mensagem. Expliquei o que era uma carta, para que servia e como era composta. “A Terra pode escrever uma carta?”, “Não! ela não tem braços nem mão. Ela deve ter ditado e alguém escreveu: tipo Deus com Moisés”.

Depois de muita conversa, saímos quintal afora. Parecia uma expedição: cadernos, canetas, um galho para apoiar na subida. O livro estava fora da sala de leitura. Lemos o livro mais antigo de todos: lemos a terra. Por um tempo, só observamos as cores do solo; por outros, só os pequenos insetos e animaizinhos que viviam ali sem que ninguém notasse. “Tia, mora muita gente aqui!”, “Eu sei, você acha que a escola só tinha móveis e livros? A escola é habitada por seres vivos mesmo quando nós não estamos nela”. Formigas, lagartos, aranhas, plantas, muitos pássaros. As crianças do 1º ano se espantaram. Elas não sabiam que tantos pássaros diferentes visitavam aquele quintal no final da tarde. Ficamos sentados em silêncio no meio da quadra depois da história contada. Eu disse que eles receberiam visitas. Visitas aladas, coloridas e cantantes. Tive a sensação de serem as mesmas aves que me acordam em casa. Certamente, não são as mesmas aves, mas é bonito pensar que elas me acompanham até a Pedreira.

Tentei conversar com o senhorzinho que está sempre plantando num pedaço de terra no alto do morro. Certamente ele é a pessoa mais adequada para falarmos sobre as oficinas de plantio e de pigmentos de terra. Ele se relaciona diariamente com a terra: eu vejo quando passo às 7h da manhã pelo seu quintal. Numa região com o segundo menor índice de desenvolvimento humano, existe um homem farto de verde. Solo-planta-homem suspensos e escondidos no verde à beira do asfalto. Enquanto a insegurança alimentar diariamente circula entre a população local, o senhor, que não se desconectou da terra, cuida e é cuidado. Marcamos de visitá-lo, pretendemos chegar com uma cesta de delicadezas, e de alguma forma ser gentil com quem gentilmente pisa sobre a terra.

Pretendemos também levar para ele um quadro pintado com tintas preparadas com as terras do território e da escola. E de alguma forma estabelecer ali um diálogo tendo como partida nosso berço comum: a relação com a terra. As oficinas são movimentos iniciais, são sementes. Germinando as sementes, algumas memórias de vida são despertadas. A vida despertada está no território, nas memórias guardadas na terra e adormecidas nos corpos. Ao estabelecermos uma parceria com uma escola de ensino regular, sonhamos com a ideia de escolas vivas em ambientes urbanos e periféricos. Trazemos como proposta o fortalecimento do território, dos saberes e das práticas de vida que lá existem. Nesse movimento, tentamos identificar quem são os guardiões do bem viver; quem são os seres, que em meio a tantas dificuldades impostas, guardam práticas que sustentam cosmologias ancestrais.

Não existe um modelo único de oficina aplicável para toda e qualquer escola e território. Já compartilhamos oficinas de tintas naturais em outros momentos. Para as crianças da escola Escragnolle, partimos da “Carta da Terra” e chegamos aos pigmentos e pinturas. Ao convidá-las a aprender mais sobre o lugar onde elas vivem, ouvi repetidamente as histórias de violência e medo. Perguntei se elas sabiam de onde eram aquelas tintas da oficina. Algumas crianças desconfiaram que a tinta era barro. “Parece tinta, mas tem cheiro de terra”. Perguntei se elas sabiam que a terra da região da escola era uma terra cheia de cores. Perguntei se elas conheciam o senhor gentil que conseguia ter uma forma diferente de ser e viver na favela. As crianças, assim como os pássaros, sabem de muita coisa. Os pequenos me trouxeram o nome e uma possível data de visita ao senhor.

As crianças disseram que não sabiam que era importante conhecer de terra, de plantas e de quintal. Durante a semana as crianças me presentearam com terras, urucum e flores pigmentadas. Presentes de crianças da Pedreira. Talvez os mais bonitos que já recebi na vida.

Agora estamos mapeando os caminhos verdes da favela. As cores da terra do quintal da escola pintam de amarelo e tons de vermelho os mapas da vida da Pedreira.

Fotos: Wagner Clayton