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Diário Cristine Takuá

AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA

By 30 de maio de 2024novembro 27th, 2025No Comments
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AVÓZINHA DO MUNDO: ARAUCÁRIA
Cristine Takuá

30 de maio de 2024

 

 

Hoje sonhei com a avózinha das florestas

A grandiosa mestra

Conhecedora dos sábios segredos 

Da ciência das ciências dos mistérios.

Em poucas palavras ela foi me tecendo

Pensamentos, me revelando caminhos 

Me orientando e mostrando a

Incrível delicadeza que habita

Na simplicidade das coisas.

Meu espírito voou e percorreu

Vales e montanhas 

Bailou, rodopiou e sentiu

A profunda liberdade que reside 

Na morada sagrada dos espíritos secretos. 

Não há saber maior que o Amor!

A cada dia nos surpreendemos 

Com as revelações que surgem 

No novo amanhecer 

Na noite fria mergulhei em busca de entendimento

E pra minha surpresa, 

A grande mestra lá estava 

Em seu trono sagrado sentada 

A me esperar

Nas longas caudas de uma Araucária 

Com sua flauta e seu Maracá 

Só me aguardando pra junto a ela

Prosseguir com a cantiga 

E soprar poesias para os quatro cantos

A fim de colorir e massagear

Os seres dessa Terra!

Cansados e sofridos 

Pela falta de entendimento.

Oh seres caminhantes, despertai-vos

Desse sono profundo 

E sentis a saborosa magia 

Que mora no silêncio cantante

Dos pensamentos seus!!!!

Foto: Carlos Papa Tekoa Yvyty Porã, RS

Há milhares e milhares de tempos surgiu esse ser sagrado Kuri, como chamam os Guarani a araucária. Essa árvore tão antiga é uma avózinha vegetal do mundo. Registros arqueológicos mostram sua existência e resistência há muitos séculos. Nesses tempos todos, as araucárias já presenciaram muita luta, resistência e também muita beleza; uma memória ativa que, lá do alto de suas verdes copas, presenciam.

Nas últimas semanas estamos presenciando no Rio Grande do Sul um profundo desequilíbrio atingindo a vida de seres humanos e não humanos. O transbordamento do Rio Guaíba, do Rio Taquari e de tantos rios que, machucados pelas duras ações humanas, não aguentaram a pressão da chuva grande e inundaram, destruíram e deixaram seu recado.

Os Ija kuery, guardiões de tudo que habita nessa Terra, estão cansados dos seres humanos, imperfeitos e desajustados. Há muito tempo estão a observar as pegadas tão pesadas do agronegócio, da mineração, do desamor e do desrespeito para com a diversidade das formas de vida.

Gravura a bico de pena por Percy Lau, Arequipa, 1903
Rio de Janeiro, 1972. Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil IBGE 1966

O marco temporal, essa tese anticonstitucional, que permite a revisão e o abuso das terras indígenas já demarcadas, é o ápice da ignorância e do abuso humano, que não consegue enxergar que sem floresta viva não haverá vida possível. A luta e o rezo constantes para garantir e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas são justamente para que todas as formas de vida  possam viver: araucárias, cotias, pacas, abelhas, ametistas, montanhas, rios e peixes.

Há duas noites, concentrada na Opy’i, casa de reza, em diálogo e estudo com plantas professoras, o espírito da Kuri veio falar comigo. Ela era bem velha e grande. Me disse calmamente que está lá do alto assistindo a toda a confusão e sofrimento que está acontecendo. Viu muitos parentes vegetais, animais morrendo afogados, arrastados pela lama, pela água brava e nada pôde fazer. Ela somente assistiu, silenciosamente, com seus bracinhos como se estivessem em forma de saudação, que reverencia todos os dias o sol, a lua e a vida, pedindo força e proteção. Ela ficou um tempo me mostrando as grandes florestas que já existiram de araucárias e que hoje estão reduzidas a algumas. Me mostrou também a força do petyngua, cachimbo Guarani feito do nó do pinho dela, e o quanto cada um que o carrega consigo deve respeitá-lo. Me recordou imagens muito belas de mulheres, preparando farinha de pinhão com seus pilões, cenas antigas onde tudo era profundamente interligado. Aos poucos as imagens e a voz dela foram desaparecendo e fui aos poucos voltando e, ao olhar para o fogo, que estava intensamente vivo, senti de me levantar e compartilhar com os jovens que comigo estavam aquela experiência mágica e muito proveitosa que havia sentido, presenciado e aprendido mergulhada em profundas mirações.

Pintura: Jose Vera, RS

Ao amanhecer do dia refletindo sobre toda a noite de estudos e aprendizados, me recordei de passagens do livro a “Queda do Céu” de Davi Kopenawa….

“No começo a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, a quem Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois disso, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido embaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!”. Então fizeram o papel do dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem sobre a terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra dos seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite.”

(Davi Kopenawa, “Paixão pela mercadoria”, em A Queda do Céu)

Pintura rupestre de Araucária, Pirai do Sul, PR