O PULSAR DA RESISTÊNCIA: ENCONTRO COM POVOS DE SEMEADURAS E SONHOS
Cristine Takuá
21 de agosto de 2025
Pelos Vales do Jequitinhonha
O sonho das Escolas Vivas percorreu
Passando por quilombos,
roças e terreiros floridos.
Encontrando mulheres que plantam,
colhem coloridos algodões
Tecendo vidas e sonhos como
Corim* pra acolher os nenezinho
que chegam nesse profundo Cerrado
de luta e muito encanto.
Viva o Cerrado! Seu povo, suas cores,
seus aromas e sabores.

Foto: Paula Comini
Entre a lua minguante e nova do mês de junho, fui junto com Carlos Papá e Veronica Pinheiro visitar algumas comunidades no Vale do Jequitinhonha, encontro sonhado há muitos anos. Quem impulsionou essa chegança foi a Associação Tingui, a convite de Pedro, Paulinha e Viviane. Esse coletivo tem buscado fortalecer o trabalho, os saberes e as artes das comunidades locais, proporcionando o empoderamento das mulheres, a organização das famílias e o fortalecimento das práticas e conhecimentos ancestrais.
Começamos nossa caminhada chegando em Francisco Badaró, onde visitamos o espaço das Tecelãs da comunidade de Tocoiós, um grupo de mulheres que busca profundamente, através dos ensinamentos do algodão, praticar essa arte milenar de plantar, colher, fiar, tingir e tecer numa beleza indescritível. Nesse primeiro encontro, se reuniram muitas mulheres e alguns homens, conversamos sobre a vida, a saúde, as plantinhas, sobre a educação e os desafios que muitas famílias estão enfrentando devido à expansão das escolas de ensino integral nas comunidades locais. Essa iniciativa da secretaria de educação local tem afetado o processo de transmissão de saberes e fazeres que as mães, tias e avós sempre tiveram com seus filhos, que as acompanhavam no trabalho da roça, na produção de suas artes, nas cantigas de roda e em todos os processos de preparo do algodão. Dialogamos muito sobre a essência das Escolas Vivas e de que forma nossa semeadura pode incentivar, apoiar e animar esse momento tão desafiador que elas estão vivendo.

Fotos: Veronica Pinheiro
No dia seguinte, fomos visitar Dona Rita, que vive no povoado Campo Buriti em Turmalina, um encontro muito especial com as cerâmicas produzidas por ela e sua família. Ela nos contou sobre sua arte, suas inspirações e desafios. Ao visitar seu ateliê e um espaço onde tem guardado as cerâmicas prontas, nos contou sobre as delicadezas que o povoado tem enfrentado com o avanço da monocultura de eucalipto e também com mudança de famílias inteiras para a cidade, em busca de estudos e trabalhos. Ela relatou a ausência de crianças na vila, fato que acarretou o fechamento de uma escola local.

Foto: Carlos Papá
Caminhando por Chapada do Norte encontramos, na pracinha da igreja, Dona Cotinha, uma anciã parteira e conhecedora de muitos mistérios. Foi muito emocionante conversar e aprender com ela. Combinamos de juntas visitarmos a Comunidade Quilombola de Poções, em Chapada do Norte. Nesse encontro em Poções tivemos a honra e a alegria de conhecer mestre Antônio, grande conhecedor das histórias e segredos do Cerrado. Muitos mestres se reuniram nessa roda onde cantamos, dançamos e trocamos muitos pensamentos. Participaram da atividade mulheres Pataxó de uma comunidade indígena de Araçuaí, que estão numa luta muito grande no enfrentamento da mineração do lítio na região.

Fotos: Paula Comini e Veronica Pinheiro
No terceiro e último dia de atividade, em uma parceria com a Escola Quilombo, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, e a Secretaria de Educação de Chapada do Norte, nos encontramos com educadoras da região, na casa do Andrezinho, o querido Mestre Passarinho, na Comunidade Quilombola Vai Lavando, em Berilo. Foi um momento muito forte e de profundas trocas com as educadoras e os ensinamentos de Andrezinho, fazedor de esculturas de madeira que retratam os seres espíritos da floresta, e sua esposa Maria Lúcia, que faz bonequinhas de pano retratando as mulheres do Jequitinhonha.

Fotos: Carlos Papá e Paula Comini
Nesses dias, todos pudemos mergulhar no sonho de um processo pedagógico vivo e livre, que olha e valoriza a relação entre o ser humano e a natureza.
Pedro, da Associação Tingui, compartilhou:
“Juntos reforçamos a importância de valorizar os conhecimentos, os saberes e os fazeres locais. Recordamos que beira de rio é sala de aula, assim como a sombra de uma árvore. Que educar e ser educado se faz também a partir da vida comunitária, regida pela ancestralidade. Que a memória não morre, apenas adormece. Que basta despertá-la para que brotem saberes e modos de vida preciosos. E que precisamos seguir firmes, valorizando e repassando às crianças tudo aquilo que aprendemos com os antepassados.”
Pela inspiração de Veronica, fizemos o caderninho do despertamento das memórias. Cada um enfeitou o seu e levou para a casa. Nele, estão sendo registrados, com desenhos ou palavras, aquilo que cada um gostaria que as crianças soubessem quando forem grandes. Depois, esses caderninhos serão entregues nas escolas para que os educadores possam se aproximar mais das realidades de cada família e comunidade.
De modo encantador, pudemos sonhar juntos, tecer relações verdadeiras e profundas e nos inspirar com todas as palavras, lágrimas, cantos e rezas compartilhados.
Viva a potência de se recordar e, através da memória, abrir os caminhos possíveis para que nossa existência seja a mais colorida possível. Que possamos cada vez mais espalhar as sementes das Escolas Vivas pelos territórios de resistência.

Foto: Veronica Pinheiro
*Corim é uma mantinha pequena, que as mulheres começaram a tecer para acolher as crianças quando nascem.

