POR QUE ESCOLA?
Veronica Pinheiro
02 de setembro de 2024
“O boneco da tia é mais bonito porque ela brinca de argila há mais tempo”.
José, 7 anos
Semana passada meu pai me perguntou por que eu sempre volto a trabalhar em escola. Tomamos um café no final da tarde. Tentei dizer pra ele o que vou tentar dizer aqui.
A escola tornou-se a principal agência de (de-/con-)formação humana no Brasil: como braço do Estado, ela se faz presente em periferias, aldeias e quilombos. São 47,3 milhões de crianças e adolescentes matriculados em 2023 no país, segundo o Censo Escolar. O diálogo com a educação básica é urgente, uma vez que mais de vinte por cento da população total do Brasil está vinculada a uma unidade escolar. Mais urgente ainda se torna porque a população escolar é composta pela camada mais vulnerável da sociedade: as crianças. E esse diálogo não é exclusivo para pais e educadores. Economistas, artistas, físicos, astrônomos, músicos… toda sociedade deveria estar comprometida com os rumos da educação e das infâncias. As crianças são as mais vulneráveis às crises climáticas e a todas as crises sociais existentes. Mudar o rumo das infâncias de nosso país é a única maneira de possibilitar futuro.
Há um provérbio que diz:
“Nós não herdamos o mundo de nossos antepassados, nós o pegamos emprestado dos nossos filhos.”¹
Os livros didáticos ainda falam de energia hidrelétrica sem falar dos impactos causados pelas hidrelétricas na vida. Sempre lembro de Ailton Krenak falando que a natureza não é “um recurso natural”, um almoxarifado de onde tiramos coisas. Essa informação precisa chegar às escolas. Os adultos, como entes da natureza, precisam tecer diálogos com as crianças. Um diálogo entre seres vivos. O sistema colonialista está a serviço de um pensamento estruturado, universalista, opressor e ele sabe exatamente o que está fazendo. A ele não interessa criar perspectivas reais de futuro. O Estado que regulamenta a educação no Brasil é o mesmo que sabe que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes sofrem situações de exploração sexual no país. O Estado a serviço do colonialismo está morto. Cabe a nós, vivos, tecer diálogos sobre a vida. As estruturas atendem agendas; a escola atende pessoas. E por atender diretamente as pessoas, necessita de vida.
Nós, que brincamos há mais tempo por aqui, podemos e devemos compartilhar com as crianças caminhos possíveis para construir “bonecos” e futuros. Li, numa revista de educação, que, nos Estados Unidos, os mesmos arquitetos que projetaram prisões projetaram escolas. As escolas em que estudei tranquilamente poderiam servir de locação para filmes ambientados em presídios: tinham muros altos, grades em escadas, grades em corredores e grades nos pavilhões. Chamávamos de “Carandiru” o anexo ao prédio onde cursei o Ensino Médio .
No Brasil, apenas 34,5% das escolas municipais possuem área verde². As escolas são puro cimento; sem luz natural; sem ventilação natural. Se seguirmos a lógica do pensamento do menino José, de 07 anos, os arquitetos, pessoas que brincam há muito tempo de projetar, poderiam projetar escolas mais bonitas e propor às instituições, de forma técnica, projetos que respeitam a vida das crianças e a natureza. Uma arquitetura para o bem viver das crianças e da comunidade escolar. Verdejar, arvorecer, ativar e acordar memórias é trabalho para uma comunidade. Uma professora com 35 crianças não consegue quebrar cimento para plantar árvore. Por isso, volto à escola com o Grupo Aprendizagens Selvagem. Volto com uma comunidade.
Ainda estamos discutindo coisas que já deveriam estar sendo praticadas. Nós, que estamos aqui brincando há mais tempo, temos essa mania de ficar discutindo as coisas ao invés de praticá-las. Mania de quem foi escolarizado pelo colonialismo.
O colonialismo “etariza”, segrega e diz que escola é coisa de professor e aluno. Se pegamos o mundo emprestado de nossos filhos, e eles estão na escola, é lá que devemos estar também, aprendendo com quem nos emprestou, aprendendo como devolver o que pegamos emprestado. Estar junto confluindo com as crianças não deve ser uma metáfora. A interação e a reciprocidade estão presentes em todos os fenômenos naturais. O contato é necessário para a manutenção da vida. Vivemos porque a vida tem uma teia sensível e super elaborada de contato e cooperação³.
Nesse ponto, unimos o pensamento de Nego Bispo ao do menino José: se a vida é circular e ela rende no compartilhamento, a experiência confluencia na condição de suporte da geração neta.
Resumindo a resposta, posso esperar que a mão que adestra ensine a ser livre.
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¹ Provérbio atribuído a indígenas originários do que hoje chamamos América do Norte.
² Dependência física existente à escola. Área verde, espaço de domínio escolar dotado de vegetação ou gramado, livre de impermeabilização, que desempenhe função educativa, ecológica, paisagística ou recreativa, propiciando a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da escola, sendo recomendado seu uso pedagógico com o desenvolvimento de projetos de educação ambiental, como horta, jardim, pomar, viveiro de mudas de planta e canteiros ornamentais.
³“…a simbiose é ‘simplesmente a convivência com contato físico de organismos de espécies diferentes. Parceiros na simbiose, companheiros na simbiontes subsistem literalmente tocando um ao outro ou mesmo um dentro do outro, no mesmo lugar e no mesmo tempo.”
Margulis, Lynn. Planeta Simbiótico – um novo olhar para a evolução. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2022.

