EU VOU SENTIR SAUDADE DO VENTO
Veronica Pinheiro
26 de junho e 2025
“eu nasci pra morar num bairro assim, cheio de natureza,
aliás, todo mundo nasceu pra isso, né”
Catarina, 9 anos
Lago das vitória-régias do Jardim Botânico
Depois de um ano do encontro das crianças com as árvores¹, voltamos ao Jardim Botânico da Cidade do Rio de Janeiro com um grupo de 40 alunos da Escola Municipal Professor Escragnolle Dória. Pela primeira vez, o grupo esteve em atividade por dois turnos, escrevemos um roteiro longo, cheio de meandros e, entre as atividades, reservamos um momento para que as crianças pudessem brincar. As escolas possuem tantas regras e estão comprometidas com tantas metas que, a cada ano que passa, brincar não faz parte do cotidiano. Eu me assusto ao pensar que uma criança em fase escolar fica, em média, sentada 25 horas por semana. São 5 mil horas por ano sentada numa cadeira, levantando apenas para comer e ir ao banheiro. Da falta de espaços seguros à falta de funcionários, cada escola terá uma desculpa para justificar a necessidade da manutenção da imobilidade dos corpos.
O grupo que foi ao Jardim, no dia 30 de maio de 2025, era composto por crianças de 9 a 11 anos de idade. Meninos e meninas na fase do autoconhecimento, lendo pela janela do ônibus todo o trajeto de Costa Barros ao Jardim Botânico. Quem nasce em Costa Barros, segundo os dados que medem o IDH da cidade do Rio de Janeiro, possui uma expectativa de vida de quase 20 anos a menos se comparada às pessoas que nascem no Jardim Botânico. Os alunos da Escragnolle não sabem ainda o que significa Índice de Desenvolvimento Humano, mas compreenderam naquele último passeio que, na cidade do Rio de Janeiro, o distanciamento da natureza estava diretamente relacionado às questões territoriais e isso impactava diretamente a vida deles.

Segundo Leonardo Boff, cada ponto de vista é a vista de um ponto. Para ele, cada um lê com o olho que tem e interpreta a partir de onde os pés pisam. Catarina, 9 anos, a partir de onde pisou, exclamou que nasceu para morar num bairro cheio de natureza como o Jardim Botânico. E, com o olho de quem vê coletivo, concluiu que todo mundo nasceu para viver em contato com a natureza. As crianças em ambiente urbano vivem um afastamento da natureza adoecedor. As consequências negativas dessa desconexão são profundas e afetam o desenvolvimento físico e emocional das crianças.
Os Huni Kuin dizem que “Todos os yuxin sentaram-se em todos os galhos da samaúma”. Para as Casas de Keto, no início do mundo, Iroko habitava a primeira árvore plantada na Terra e através dela os outros orixás desceram do céu. Se afastar das árvores e da natureza é também andar desencantado; é encarar a dureza de um mundo cosmofóbico sem yuxin e sem orixás. Richard Louv cunhou o termo “Transtorno de Déficit de Natureza” ao observar uma mudança profunda no comportamento das crianças em relação à vida por conta da desconexão da natureza². Na Escola Escragnolle, por exemplo, as crianças temem ao rio pelo histórico de violências que fizeram do rio uma grande cova para desafetos e pelas enchentes vividas pela comunidade a cada verão.

Nossa conversa e caminho no Jardim Botânico margeou o caminho dos lagos, córregos e sistema de irrigação do lugar. Dessa vez não olhávamos para as copas das árvores, mas caminhávamos com ouvidos atentos para ouvir o caminho das águas. As águas nesse dia conduziram folhas portadoras de sonhos e segredos. As águas também abrigavam o espetáculo das vitórias-régias e ninfeias floridas que ocultavam peixes grandes e uma pequena floresta submersa. Havia mais silêncio que o de costume entre as crianças. Era a voz úmida das águas que regia um dia Aprendizagens.
Entre conversas, escutas e caminhadas chegamos à Coleção de Plantas Medicinais do Jardim Botânico. Ali folhas, flores, cascas e raízes mediavam a chegança das crianças. Diálogos sensíveis, repletos de saberes tradicionais e científicos, fluíram durante todo o dia. À tarde, sob a regência dos Fitoimaginários, Viviane Fonseca-Kruel e Brígida Campell assumiram o encontro, a oficina ministrada por elas integrava arte e etnobotânica criando com as crianças Aprendizagens Vivas cheias de beleza e significações. Rafaelly, 9 anos, observa a professora Viviane com olhos de alegria, olhos de quem vê o amanhã. A menina mora na Pedreira, antigo Morro da Ventania, mas foi no Jardim Botânico da Cidade do Rio de Janeiro, sentada sob um arbusto de Justicia Gendarussa que ela brincou de observar o vento nas copas das árvores.

Popularmente conhecido como Abre-caminhos, a sombra do arbusto foi o lugar preferido de Rafaely. De tudo o que ela viu e experienciou, Rafa disse que sentiria saudade do vento. Lembrei de José, 7 anos, que me ensinou ano passado que a floresta a gente traz dentro do peito. Disse a ela que ela tinha ventania dentro e que os bons ventos lhe acompanhariam. Rafa pediu para sair por último. “A última criança na natureza”, disse Lucas.
Voltamos à Pedreira mais fortes e espiritados, escrevendo diários coletivamente, cuidando das mudas de árvores plantadas e desejando que o vento volte a falar no Morro da Ventania. Ao chegar à escola, Hugo, 10 anos, concluiu:
“Se todo mundo for morar lá no Jardim, vão derrubar as árvores e não terá mais o Jardim. A gente tem que continuar plantando aqui, pra ter árvore e macaco aqui também. Vai demorar maior tempão, mas vai ficar bonito.”
Penso que os rios e os ventos, seres que sempre habitaram os mundos, delicadamente estão desenhando futuros possíveis na Escragnolle. As falas das crianças, me sinalizam isso. Talvez demore maior tempão, enquanto isso continuaremos semeando mudas e conectando mundos.

Fotos: Rosemberg Auni
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¹ Diário de Aprendizagens, SUMAUMANOS, por Veronica Pinheiro – 14/05/2024
² Richard Louv. A Última Criança na Natureza. Editora Aquariana, 2016.

