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Diário Cristine Takuá

KUNHANGUE REKO | O MODO DE SER MULHER

By 26 de junho de 2025novembro 28th, 2025No Comments
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KUNHANGUE REKO | O MODO DE SER MULHER
Cristine Takuá

26 de junho de 2025

 

 A energia feminina, Ara’ i Gennis, 2020

 

“Geralmente, no período menstrual é o momento de escutar o nosso próprio corpo, dizem que é o momento da solidão, de você curtir seu corpo, escutar seu corpo, afastar-se das pessoas, porque nesse momento você está num período de conflito também, angústia, às vezes, então por isso é muito importante pra nós esse momento – se chama o momento de solidão, de curtir a solidão. O seu próprio corpo, o seu espírito, o seu próprio respiro. É um momento perigoso do nosso sangue descer e aí a gente fica cuidando da gente, fortalecendo a gente mesma.”
Somos aquele chão que carrega e leva tudo – Corpo-Território 2 – Sandra Benites

 

No início do mês de junho, recebi um grupo de meninas-moças e jovens do Ensino Médio e Fundamental da escola estadual da minha comunidade para fazer um diálogo sobre o modo de ser mulher. Falamos dos tempos, dos desafios, dos sonhos e das lutas. Me reuni na Escola Viva Guarani com Carlos Papá, que direcionou as primeiras palavras falando do território e depois ampliando para a noção do corpo como parte do território. Minha cunhada Clementina Ara e a sobrinha Milena Jaxuka também participaram compartilhando os conhecimentos e os pensamentos sobre o mundo da Mulher.

Eu sempre gosto de falar da avó, da avó da avó, da avó da avó da nossa avó e mencionar o quanto elas foram sábias e guardiãs de muitos saberes e fazeres. A vida delas era totalmente diferente da nossa. Gosto de falar o quanto precisamos nos concentrar para ativar e despertar práticas que estão adormecidas.

Durante a conversa com as meninas, me lembrei de um texto que li tempos atrás: “Kunhangue arandu rekó, ta ‘ánga re a ‘egui nhembopara: sabedoria dos ciclos de vida das mulheres Guarani em pinturas e palavras”, de Gennis Martins Timóteo. Nesse texto, Ara’i Genni mostra algumas pinturas que ela fez e traz uma reflexão sobre o que acontece durante a menarca, a primeira menstruação, um momento muito sagrado para as mulheres Guarani. É um momento que é como uma benção de Nhandexy, a nossa mãe verdadeira que protege e cuida de todas as mulheres.

O beija-flor é o grande espírito sagrado enviado por Nhandetchy para trazer fertilidade. A flor que ele traz no bico se refere ao primeiro sangue da menstruação que derrama sobre o útero em forma de uma planta com folhas e flores que ainda irão desabrochar dentro do útero. A primeira menstruação é a mais importante da vida das meninas Guarani. A partir daí, um novo ciclo de vida irá começar, a infância termina e a vida adulta começa a surgir. Aos poucos a vida vai mudando de uma forma em que nós mulheres saímos de um mundo de fantasia e entramos em um mundo real onde os fatos acontecem e as experiências se acumulam a cada ano que passa. Djatchy é um termo usado pelas Guarani de Biguaçu para referir se quando uma mulher está menstruada. Quando está para menstruar, dizemos que está na lua. A lua é um ser sagrado que representa o símbolo feminino Guarani que influencia a vida e o modo de ser de uma Guarani.”

Memby ryru (útero), Ara’’i Gennis, 2019

Foi muito especial conversar com as meninas e falar sobre a vida, o parto, os cuidados com o corpo e a importância de escutar as mais velhas, as anciãs que são guardiãs de segredos muitos antigos. Falei sobre a importância do algodão para a vida da mulher, para o cuidado  e afeto com o nenê que chega. Compartilhei sementes de algodão com cada uma das meninas que vieram para conversar e caminhamos até o pezinho de algodão que tenho plantado perto de minha casa.

Ara Clementina falou da importância do resguardo e do respeito com o corpo durante cada ciclo e alertou que, se não cumprirmos essas regras, ficamos adoecidas. Falamos dos métodos contraceptivos naturais e o perigo que representam injeções que esterilizam as mulheres, fazendo com que elas fiquem meses sem menstruar. Essas más práticas vêm ocasionando câncer no colo do útero de algumas mulheres indígenas, por isso precisamos ter coragem de tecer em redes diálogos de resistência e que consigam esclarecer para as meninas novas os bons caminhos do viver.

Durante as falas das meninas, que ficaram fazendo perguntas, me recordei e compartilhei com a professora para depois mostrar às alunas, a série de Cadernos Selvagem Corpo-território.

Em outro texto, Sandra Benites comenta:

“A menina deve ter cuidado desde a oguapyare – menstruação, e nós mulheres Guarani sempre temos que cuidar do nosso corpo por toda a vida. As tchedjaryi dizem que a dor de cabeça vem com o vento. Por isso, não podemos pegar friagem nesse período. Você não pode sentir dor de cabeça no resguardo, porque sentirá sempre dor e com o tempo a dor fica mais forte. As meninas também não podem mexer com fogo, com calor, sair no sol quente. O excesso de calor dá tonturas, dor de cabeça. Quando estamos menstruadas não cozinhamos. Durante a menstruação, ficamos muito expostas, frágeis, sensíveis. Temos que ficar sossegadas, sem estresse, tranquilas. Desrespeitar essas regras implica ter problema no py’a – coração” (BENITES, Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola, 2015, p. 21)

As meninas estavam muito curiosas de saber histórias sobre a mulher e a sua relação com a natureza e com os espíritos sagrados. Papá contou a história de Kuaray e Jaxy (Sol e Lua), e eu segui falando sobre a importância da Ka’a e da Takua para o mundo Guarani.

“Takua é a deusa mais antiga, ela que gerou o nosso universo, principalmente nosso sistema solar. Avó de todos os deuses e o pulsar de um coração, o único jeito de se comunicar com ela é através do takuapu, um instrumento sagrado usado pelas mulheres na casa de reza. Quando uma mulher bate o takuapu no chão o som desse instrumento chega até a deusa recebendo assim seu chamado”. (MOREIRA ANTUNES YVYDJÚ TAKUA, 2019, p. 3).

Takua, Ara’’i Gennis, 2019

Esse encontro com as meninas-moças me trouxe muitos pensamentos sobre o tempo que eu dava aula e falava do parto, da plantinhas que curam, da importância do resguardo como uma ciência profunda da floresta, a sensibilidade dos sonhos como orientador e guia da vida e todas as articulações críticas e políticas que venho fazendo ao longo de alguns anos de caminhadas. Contei sobre a minha atuação na coordenação da Comissão Guarani Yvyrupa e o que tudo aquilo representou para mim, uma vez que, até aquele momento em 2016, somente homens eram os coordenadores. A partir da minha entrada, incentivei muitas mulheres a serem lideranças e hoje vejo muitas mulheres falando e lutando para defender seus direitos. Contei também sobre todo o sonho das Escolas Vivas e essa coordenação que hoje faço semeando o acordamento das memórias e o fortalecimento dos nossos corpos e territórios.

Um salve a todas as anciãs que nos antecederam!