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Diário Veronica Pinheiro

AGORA EU SEI O QUE É NATUREZA

By 29 de maio de 2025novembro 27th, 2025No Comments
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AGORA EU SEI O QUE É NATUREZA
Veronica Pinheiro

29 de maio de 2025

 

“Agora eu sei o que é natureza!”, disse Giovanna, 9 anos. A menina passa os dias calada. Traz sempre um sorriso leve no canto da boca. Geralmente rompe o silêncio para reclamar do barulho que as outras crianças fazem. Quase não é vista na companhia de outras crianças. Na maioria do tempo, Giovanna está olhando para dentro. E quando olha para fora, sorri um sorriso de canto de boca. Sua voz é firme, levemente rouca; suas palavras são assertivas, levemente ríspidas. Mas seu sorriso de canto de boca é como flor. Giovanna não escreve, mas diz muito em seus desenhos. Ela desenha, e como desenha! Um dia ela estava triste porque não conseguiu escrever um poema sobre amizade. “Eu não sei escrever. Posso desenhar?”

Na última quarta-feira, a turma de Giovanna, uma turma do 3º ano de Ensino Fundamental,  participou da oficina Vida na Terra. “Vamos plantar floresta!” Essa era a chamada inicial. Vida na Terra também é o nome de uma seção no Caderno PINGO – O Sol atravessa tudo. A oficina é um desdobramento dos diálogos estabelecidos com as crianças a partir do Pingo, na Escola Municipal Professor Escragnolle Dória. “Uma escola verde, tia?” “Pode ter flores, pra ser colorida também?” “Pode ter planta que come e faz chá também?” “E se o caramujo comer tudo de novo?” Os caramujos comeram toda a horta que plantamos em 2024. A partir disso, pudemos conversar sobre equilíbrio, sobre alimento, sobre as vidas que habitam e coexistem no espaço escolar.

Ouvidas as crianças, a oficina foi organizada para que o primeiro dia de plantio na escola, em 2025, tivesse folhas, flores e frutos. O combinado foi “plantar redondo”, formando canteiros circulares em torno de uma árvore frutífera da Nhe’ëry. Uma horta mandala. A horta mandala floresce em círculos, onde cada planta encontra seu lugar no compasso da terra. Esse modelo é bastante frequente em projetos de permacultura, que buscam uma agricultura mais integrada com os ciclos naturais, com menor impacto ambiental e mais eficiência.

Estiveram presentes no dia da oficina voluntários sonhadores que plantam mudas e mundos. Entre eles, Amilton Pinheiro, Otávio Ferreira, Taiana Simões e Carol Delgado. Amilton nunca plantou uma árvore, mas já derrubou algumas, estava aprendendo junto com as crianças. Otávio é um homem da terra, que planta para alimentar a barriga e os sonhos de sua comunidade. Taiana é plantadeira sabida, bióloga de formação, com muita experiência em plantios e escolas. Carol planta sorrisos, sonhos e mundos, ela planta também registros fotográficos. Em comum, os quatro têm sorriso e olhar de criança que ama a vida.

O dia iniciou com Amilton buscando as mudas antes que o Sol surgisse. Na escola, ele encontrou Otávio; juntos, eles foram responsáveis por criar os berços circulares que acolheriam as mudas e a composteira. Taiana chega junto com as crianças, contando sobre o Odu Obará que fez o melhor que podia quando recebeu uma tarefa. A conversa com os pequenos foi curta porque era dia de plantar mudas. Os pequenos foram divididos em grupos e, nos grupos, cada um tinha uma função: havia quem cuidasse das ferramentas, quem cuidasse das mudas e quem cuidasse da água das plantas e da água das pessoas. Todos cuidavam de todos, cuidavam também de manter vivas as minhocas expostas durante a feitura dos buracos. Giovanna passeou entre os grupos e não ficou em nenhum. Ela observou o plantio dos canteiros agarrada a um vaso de tomilho.

No final do plantio, a menina, que passa os dias em silêncio, falou: “Agora eu sei o que é natureza”. A maior parte de seus colegas de classe já tinham voltado para a sala de aula. “É, agora eu sei o que é natureza!” Percebendo que era observada, sem largar o tomilho, ela voltou a falar:

“A natureza é todo mundo junto, pisando com cuidado pra não matar quem vive na terra. É tocar com carinho as coisas pra não machucar as plantas, nem machucar a mão nas ferramentas. Natureza é ficar calmo no Sol quente. Natureza é cuidar pra tudo continuar vivo.”

Muitas outras coisas foram ditas por Giovanna naquela hora em que ela rompeu o silêncio. Parte do que foi dito foi registrado num pequeno vídeo.

As palavras de Giovanna regaram os olhos e os corações presentes. Ela aprendeu, abraçada a um vaso de tomilho, a se acalmar no Sol quente. Aprendeu com o corpo e criou memória junto ao corpo da Terra. “Agora eu sei.” Na relação, observando os outros corpos, ela encontra palavra. Enquanto as crianças plantavam em círculo, Giovanna observava a ciranda dos corpos. Corpo da Terra, aberto e parcialmente exposto. Corpo minhoca delicado, facilmente rompido no contato com o corpo ferramenta. Corpos de gente agachados sem evitar contato com o chão. Corpo de planta exalando aromas, colorindo o dia. Sol, corpo celeste, atravessando tudo e todos. Sem atravessamentos não há vida.

A vida se dá pelos atravessamentos.